terça-feira, julho 29, 2008

5º Jogo das 12 palavras (último a integrar o livro"22 Olhares/12 Palavras")- 1ª parte

Eis-nos chegados ao 5º Jogo que, sem o suspeitarmos, nem sequer pensarmos. ficará como um marco desta nossa "lúdica brincadeira com as palavras" pois será o último jogo a entrar no livro colectivo "22 Olhares sobre 12 Palavras" com nascimento para Novembro. E ao escrever "Novembro" sem mais, descobri que mais dia menos dia - e depende dos ciclos lunares não é? - se completarão 9 meses desde a arrancada inicial da ideia em forma de pergunta. Curiosas coisas nos traz a vida.
Temos a alegria de um novo amigo e alguma tristeza de algumas amigas que por muito trabalho não conseguiram colaborar neste 5º Jogo.

Posto isto proponho um interregno para o mês de Agosto, pois se agora há amigas e amigos de férias e a maioria muito, mas muito cansada, é certo que em Agosto param e vão recuperar as energias para um novo ano de trabalho. Então que os Jogos façam um interregno se por bem acharem. Por mim, as férias são iguais aos dias que correm. Noutra altura irei aos States e Canadá estar com filhos e netos. Para já há algo mais importante a fazer por cá.


I
Agarrei os cobertores e ajustei-os à minha volta de modo a formar um pequeno casulo. Mantive-me quieta, evitando qualquer movimento. Tirei os óculos que tinham ficado embaciados devido ao vapor formado pela minha respiração ofegante. Não era a primeira vez que acordara assim, assustada, com o inundar de pesadelos que se abatia sobre mim. Porém, estes eram rapidamente atingidos pelo ostracismo na minha mente. Olhei em volta, para o quarto iluminado pelo luar, ignorando a sombra vertical que me assustava antes de descobrir que era apenas o armário. Silenciosamente, agradeci a presença da lua, pois a escuridão era um inferno para mim. Poucos minutos depois já o susto tinha sido esquecido, e a minha imaginação vagueava por outro país imaginário. Sim, eu era o que se podia chamar de nefelibata – sempre nas nuvens – e não passava um dia em que não sonhasse acordada. Os meus sonhos podiam percorrer enormes distâncias – desde uma simples conversa até um reino de fadas – e mais variável não havia.

Mas agora não era hora para sonhar. Nem quero imaginar o que iria acontecer se a Mãe me encontrasse acordada.
Ana Pessoa

II

O "STRESS" DO VERÃO

Somos um país de marinheiros, de agricultores, de pescadores, de poetas realistas e de poetas nefelibatas, de gente simpática, acolhedora e acomodada vivendo normalmente no ostracismo de quem se encontra geograficamente situado na ponta mais ocidental deste velho continente, com o mar como vizinho.

Por esta altura do ano, nós, habitantes do sul, vemo-nos inundar por uma onda de gente que chega “a todo o vapor, de automóvel, de comboio, de bicicleta, de pé descalço e mochila às costas, mas todos mostrando no rosto o “stress” habitual de quem vive nos grandes centros urbanos. Se os olharmos com alguma atenção poderemos vê-los tão enrolados sobre si, tão apertados pelos seus problemas, sem ponta por onde lhes pegar, que até nos parecem o casulo dos bichos-da-seda.

Nos primeiros dias andam num movimento constante por este espaço, anteriormente tão sossegado, que nem se sentam para tomar uma “bica” ou um refresco, tal é a agitação desta gente da cidade.

Somente, à noite, ao luar, será possível vê-los numa calma conversa, deitados na praia, na horizontal a olhar o firmamento ou de pé, na vertical, junto ao balcão dum calmo bar, possivelmente, a discutir os infindáveis varáveis desta crise que nos atormenta

É assim o inferno do verão!

Benó

III

Depois do funeral do pai, Mariana saiu do cemitério a todo o vapor e cabisbaixa, dirigiu-se a casa.

Refugiou-se ali, como se de um casulo se tratasse e ao mais leve movimento vindo da rua, corria para o quintal onde um luar de prata fazia com que por momentos, esquecesse o inferno dos últimos dias...

Cansada de caminhar sobre os passos já dados, resolveu afastar-se um pouco, sair do Povoado.

Nefelibata, seguiu pela encosta onde tantas vezes, com o pai e os irmãos, que eram muitos, haviam parado a descansar das brincadeiras e da caminhada.

O seu lado caminhava Nicas, uma cadela branca de pequeno porte, pelo macio e um olhar doce. Nicas Corria e saltava, voltava atrás ao encontro da dona e quando Mariana se sentou num tronco seco para descansar, Nicas aninhou-se no seu colo e fechou os olhos ao sentir a mão que demoradamente lhe acariciava o pelo.

Recordou mais uma vez o pai e esse pensamento veio inundar de paz o seu coração.

Passou horas a deambular pelo campo e por dentro de si própria, as lembranças da infância ajudavam-na a serenar.Com a cadela ao lado, voltou para casa e á sua passagem pela rua, percebeu o burburinho da conversa das vizinhas, que de forma pouco variável se entretinham com a vida alheia!

Sem uma palavra entrou em casa, sentou-se numa velha poltrona, tal como ela, gasta pelos anos, Fechou os olhos e deixou-se viajar até onde a memória lhe permitia.

Recordou a sua primeira viagem de comboio, tinha então 2 anos, era verão e adoecera com tosse convulsa .Foi também a primeira vez que viu o mar que nunca mais esqueceu.

Desses tempos, lembra ainda a mãe, nova e bonita, que junto a um fontanário, á mão, lavava as roupas.Recorda a Ilha até onde foi num barco de pescadores, o senhor Zacarias e seu neto com o mesmo nome, um gato amarelo, um amontoado de pelo e de ternura que alegrava as suas brincadeiras. Besnico era o seu nome e até hoje faz parte do seu imaginário.

Lembra mais uma vez o tio Joaquim, que tinha os olhos da cor do mar, a mãe Albertina a quem era confiada enquanto o pai, homem vertical na sua forma de estar e de sentir, e a mãe, nova e bonita, trabalhavam debaixo de um sol abrasador. Ouve o chiar das rodas das carroças que transportam cortiça e sonhos.

Já o sol entrava pela janela quando percebeu que havia passado ali a noite.Tomou um banho, preparou um chá que bebeu enquanto folheava um livro de páginas amarelecidas pelo tempo.

A cadela de pelo branco, de olhos semicerrados, continuava deitada sobre o tapete.

Mariana não conseguia esquecer os últimos dias do pai que em sofrimento foi internado, e partiu cansado de trabalhar, cansado de sonhar ver este país sair do absoluto ostracismo involuntário a que foi votado.

Enquanto arrumava algumas fotografias, lembrou mais uma vez o tio Joaquim, o que tinha olhos da cor do mar, lembrou a mãe, nove e bonita e quando se preparava para adormecer viu o sorriso do pai.Mariana secou uma lágrima rebelde que teimava em deslizar no seu rosto, podia então adormecer em paz, fechara ali mais um capitulo da sua vida, e quando acordasse, certamente no brilho do sol ou das estrelas, encontraria sempre aquele sorriso. O sorriso do pai.

Bicho-de-Conta

IV

sou

casulo:

inferno fechado

vapor


Pequeno país

a inundar-se

antes do nascimento


Sou

casulo

des-movimento-me


quase uma

conversa nefelibata


quase um

ostracismo ao luar


Pequena gota variável


vertical
pendurada ao acaso
em galho qualquer


Rubens da Cunha

V

ANTI-VERTICAL


Eu sei porque acordei de repente nesse casulo e a conversa lá fora não me importa em nada e eu quero mais que tudo se acabe nesse inferno que o mundo vive e que o céu vá inundar o luar lá fora na noite num movimento ausente de formas castrado parado e onde todo o nefelibata tome conta de tudo e enlouqueça ameace e coloque no ostracismo toda cidade país continente planeta em órbita desaparecendo e formando um vapor inútil e de forma variável oposto encostado longe de tudo dessa confusão e eu todo o tempo deitado em posição de sonho - anti-vertical.

Júlio Carvalho


VI

Ermitão


Olhando o luar através de uma janela envidraçada com o sabor do tempo, lembrou-se, por um instante, de almas que partiram e deixou o vapor embaciar o vidro com saudade. Fê-lo tantas e tantas vezes.

Iniciou-se um novo ano. Resolveu pegar nas cartas de Tarot que tinha recebido pelo Natal dentro de prenda embrulhada com surpresa. Debruçou-se sobre o livro que vinha na caixa de futuro e calculou a sua carta: Ermitão. Até então, nunca tinha pensado no que significaria aquela palavra tão mística, ilustrada por um mago.

E se o ostracismo fosse uma prática comum entre os mortais?! Pôs à consideração dos seus pensamentos mais profundos e descobriu-se acompanhada apenas por sentimentos e não por gentes... Alguém bastante sociável, cujo contacto com os outros era muito aprazível, mas que acabava sempre por se refugiar nasolidão.

- Por que corres tanto à procura de algo que não sabes se existe?

- Porque sinto.

- O que sentes tu, afinal?

- Sinto que a minha vontade de partir é sempre mais forte que a de ficar!

- O que procuras? Vejo-te sempre fechada no teu casulo.

- Procuro-me.

- És feliz?

- Sim, quando me encontro.

Sorriu, terminou a conversa e devolveu à cogitação uma leitura vertical de um poema muito velho e usado.

Seria uma nefelibata, de certo sem saber que o era. O reconhecimento da maneira de ser de cada um abrange um conhecimento da Psicologia existente em redor.

Com um movimento mágico da sua mão direita, levantou uma carta do baralho sem lhe tocar. Concentrou a sua energia na intuição e foi desvendando as linhas orientadoras ditadas por imagens simbólicas.

Bem sabia que o futuro era variável e dependia dela, mas fixou o olhar na sua carta regente do ano em que se encontrava… Ermitão.

Aquela estava na mesa e fitava-lhe o olhar, adivinhando a realização de projectos ocultos.

Sentiu um calor inundar-lhe as faces, o coração bateu descompassadamente. Aquele ano não seria igual. Um segredo seria desvendado, um sonho plantado na terra e regado com água comum. Haveria um intervalo entre o inferno e a Solidão?! Seria o Ermitão uma carta escolhida ou fadada?! Naquele ano, percorreu o chão do seu país, calcando um destino apressado através de um relógio ausente, cometendo pecados em silêncio.


Eli Rodrigues




VII

por opção

Nefelibata me chamam porque insisto em viver neste país irreal.

Acompanho o movimento das marés e nos bancos dos jardins ou nas escadarias onde repousam sento-me à conversa com os deserdados da vida. Aqueles que o ostracismo social - variável que por norma se mantém invariável e cria pequenos e grandes infernos aqui na terra tendo eu a sensação do seu alastramento – empurra para os limiares do que não se poderá denominar vida humana com dignidade vivida.

Sonhador porque me quedo em qualquer esquina. Vertical figura a ver o luar iluminar a escuridão enquanto a minha imagem parece desvanecer-se, breve vapor na humidade das noites.

Nefelibata serei pois porque me deixo inundar de fraterno amor por tudo o que existe e não me fecho em nenhum casulo casa estatuto ou qualquer outra coisa que a moda das pseudo-elites invente.

Eremita

VIII

DIFICULDADE SUPERADA

Quando li as palavras escolhidas para este jogo, dado os seus sinónimos, assaltou-me a ideia de que iria ter alguma dificuldade em compilar um texto onde elas todas se encaixassem. Havia uma, especialmente, que me provocava um ligeiro franzir de testa.

Assim, peguei na caneta e no bloco de apontamentos e pus-me a escrever o que depois teria um titulo adequado.

Quando à noite o luar vinha inundar as ruas da sua aldeia, sentava-se à conversa com o Augusto, seu amigo de longa data, escritor nefelibata com alguns livros já publicados mas que, com as suas excentricidades e fechado como um casulo, a vizinhança não o tomava muito a sério.

No entanto, gostava de trocar ideias com ele e, muito embora, os assuntos fossem de temas tão variáveis como a literatura ou a politica, acabava sempre por haver um acordo final amigável.

Sentados nos degraus do adro da igreja, naquela noite enluarada relembravam com saudade a viagem que fizeram naquele comboio a vapor e que os levaria para a cidade, imbuídos do sonho de transformar este país num sitio mais aprazível para viver.

Nesse reviver do passado, citavam o Braune e o Tarzan, dois cães amigos que sempre os acompanhavam nas suas caçadas mas que tornavam num inferno a existência dos gatos da vizinhança. Riam com gosto da habilidade que o Braune executava com elegância canina quando, num movimento rápido e preciso, com uma elevação na vertical, lhes tirava o cigarro que cada um segurava entre os lábios.


Cheguei a este ponto da minha crónica e fui verificar se as palavras estavam todas aplicadas. Claro que não estavam e faltava-me uma, aquela que me tinha logo parecido de mais difícil aplicação no contexto da minha historieta.

Mas como me iria sair deste desafio?

Uma noite bem dormida, às vezes, ajuda-me a encontrar a solução certa para as dificuldades que se me deparam no meu dia-a-dia e assim, fui dormir.

Acordo, torno a ler e a reler e chego à conclusão de que as personagens do ensaio para esta espécie de história não irão cair no ostracismo de quem me lê.

Tenho ou não tenho razão?

Benó


IX

Cicatrizes

Ainda meio fechada num casulo, recém-repatriada de um país envolto em vapor, qual nefelibata votado ao ostracismo, sou chamada à realidade pela professora.

A dona Conceição enceta uma conversa que, a mim, me irá fazer enfrentar algum inferno ainda pendente. Esta propõe aos alunos das duas classes, terceira e quarta, que façam uma redacção sobre uma possível futura profissão, igual para todos. Médico(a). Pressupondo que virá a ser esta a nossa profissão, é sobre ela que vamos ter que escrever, como trabalho para casa.

Chegada a casa, tranco-me no quarto e começo a dar largas à fantasia, colocando-me na pele de uma médica e percorrendo mentalmente espaços que se me tornaram familiares, moldando-os a mim com uma nesga de ilusão.


Se eu fosse médica teria um consultório, bem montado, com todos os medicamentos
para tratar os meus doentes.
Tratá-los-ia, a todos, com deveres de uma boa médica…

Suspendo a escrita. As lágrimas afloram e temo inundar a folha branca ao verter o meu pranto. É que as minhas cicatrizes não são algo subjectivo ou variável. Estão bem visíveis. São marcas indeléveis que me deformam o rosto, depois das feridas fechadas.

Com um breve movimento de cabeça, tento sacudir estas sombras que se projectam sobre mim em queda vertical. Se eu, um dia, viesse a ser médica, quem sabe, conseguiria curar-me a mim própria, removendo estas cicatrizes que me amargam na carne e na alma…
É sobre isso que vou ter que escrever, pois vou sofrendo os meus dias na expectativa de recuperar completamente, de que todas as marcas se desfaçam como a escuridão ao ser trespassada por um luar radioso.

Fa menor

X

E a conversa fluiu como o luar, como o vapor crescendo vertical, em movimento, assomando da terra ardente – inferno para tantos! – a inundar de força a sua alma.

Nefelibata votado ao ostracismo num país de herança, é agora o sussurro variável em tonalidades coloridas que abre o casulo dos sonhos.

Sonhos que se concretizam em cada despertar.

Jawaa

XI

Amizade interrompida

Era assim que gostava de o encontrar. Sem premeditação nem combinações prévias, deixando aos humores dos deuses a escolha do local onde nos iríamos cruzar. E quando o encontro acontecia, variável no tempo mas sempre prenhe de alegria e descoberta, procurávamos um casulo onde nos isolávamos do inferno da cidade, fosse ele um jardim ou a beira-rio, e entregávamo-nos a uma longa, lenta e sempre inacabada conversa.

Falávamos então de todas as incertezas. Ele, nefelibata sem o saber, estudava pássaros e contava-me como voava com eles. Eu, mais prosaica, acompanhava-o com o coração, sorria e reafirmava que iria salvar o país com o verbo e a raiva. Por ali ficávamos, convocando memórias e desejos, até à hora em que o luar se punha e as primeiras pinceladas da madrugada vinham inundar o nosso silêncio cansado e fértil.

Naquele dia, contudo, ele estava diferente. Uma sombra desconhecida a embaciar-lhe o olhar, a quebrar-lhe a postura vertical, a traçar-lhe reticências nas frases: que quando desprezamos o corpo ele se revolta e nos trai, que o seu corpo o ia trair - assim afirmavam os que sabiam de ciência certa. Não enunciou a palavra morte. Mas sobre nós escureceu uma nuvem de húmido vapor vinda do fundo do medo envolvendo-nos num movimento circular e paralisante. Ele, já recolhido num ostracismo desistente. Eu, perplexa e atordoada. Infinitamente só li nos seus olhos o adeus e sorrindo chorei sem lágrimas a nossa amizade interrompida.

Justine

5º Jogo das 12 palavras (último a integrar o livro) "22 Olhares/12 Palavras")- 2ª parte


XII

Nefelibata
, voando nos sonhos que constrói por aí

no inferno das memórias, saído do casulo cerrado,

cresce vertical e puro, no ostracismo a que se sente votado.

Porque do mundo variável em que desperta,

nem sempre o vento murmura em conversa amena,

quantas vezes sopra um vapor quente que escalda

e o faz tombar ofegante.

Miruíi

XIII

surpresa na noite

Estávamos à conversa quando um imprevisto e subterrâneo movimento, mesmo por baixo de nossos pés, nos perturbou. O movimento, de intensidade variável, tornou-se inquietante. Calámo-nos. Sentíamo-lo cada vez mais intenso e um som como um rugido chegou-nos das entranhas da terra.

Algo temerosos afastámos-nos um pouco. O silêncio entre nós. Sem pestanejar fixávamos o ponto onde antes sentíramos o movimento.

A terra fendeu-se e um intenso jacto de fervente vapor, vertical coluna, queimou tudo ao redor num círculo de vários metros. Sem desviar os olhos batemos em retirada, ás arrecuas, mas não para fugir. A curiosidade, superior ao espanto e ao receio. Estávamos num estado de estupor. O luar a inundar a clareira criada pela devastação dos arbustos e árvores calcinadas dava-nos total visibilidade.
Por horas sem conta ficamos silenciosos a observar a vertical coluna a subir pelo nocturno céu
enquanto aos poucos perdia intensidade, potência…tanto no calor que irradiava, como na altura a que se projectava.

No cimo de um inesperado e intenso jacto surgiu um imenso casulo.

Casulo foi a palavra que nos surgiu.

Semelhava o casulo do bicho-da-seda.
Mesmo à distância a que nos encontrávamos constatámos que teria uns dois metros e meio de comprimento por cerca de um metro e meio, ou mais, de largura.

O jacto de vapor decresceu de intensidade e altura até o casulo pousar suavemente no solo.

A surpresa e a consternação eram gerais mas, aos poucos, face à quietude proveniente daquele imenso corpo aproximámo-nos do casulo depositado no solo calcinado, num movimento síncrono como corpo único. Não se ouvia um ruído. Nem o passar do ar. Nada se movia ou ouvia. Na terra a anterior e inesperada agitação parara. Sem olhar uns para os outros a cerca de dois metros estacámos.

Os olhos sempre focados naquele enorme e desconhecido objecto iluminado pelo luar como artista em palco iluminado pelos holofotes. A lua parecia ter parado num ponto do céu. Num recanto do meu cérebro a racionalidade abriu caminho e ecoou: foi a terra que parou de girar para que a lua continuasse a iluminar o estranho corpo ali deixado…

Eis que este começa a irradiar, de dentro, uma luz amarelo-alaranjada viva, contrastando com a branco-azulada da lua e, diante de sete perplexos pares de olhos abriu-se ao meio, como casca de noz e um enorme ser alado, de humana forma ergueu-se distendendo o alto corpo e as longas asas de uns quatro metros de envergadura. Foi então que nos viu e saudou-nos.

- “Saúdo-vos, humanos. Sou o Nefelibata Portugal e há 865 anos fui punido e enviado para as profundezas do planeta Terra. A punição foi tanto para mim como para vós, povo português, em virtude do violento acto de um filho contra sua mãe, por ambição em reinar.

Nós, os Nefelibatas somos os mensageiros dos sonhos construtivos que alimentam a roda da vida de cada povo e do planeta. Vós sois o meu povo. O inferno em que tendes vivido acaba hoje porque o ostracismo que me foi imposto para punir a minha incúria ao não ter previsto a subversão do sonho deste país terminou.
Voltareis a ser um país que sonha, age e faz acontecer. A vossa auto-estima é-vos devolvida e fareis grandes feitos, coisas que até há pouco vos foram sonegadas porque esse é o meu trabalho e estava impedido de o fazer – alimentar e reforçar o sonho construtivo e inovador…”

Dito isto o enorme ser alado abriu as asas e desapareceu nos ares. O luar, que sempre sobre ele estivera fixo, desapareceu de imediato. O tempo, que havia parado, retomou a normalidade e vimos a lua no céu. Muito à frente do local onde nos encontrávamos.
TMara

XIV

Neste casulo em que me fecho,
a conversa nefelibata
do luar
é movimento e inferno
variáveis de um país,
de vapor não erguido
na vertical
e que de ostracismo

me irá inundar.
Paula Raposo

XV

Opção

Cansado do ostracismo a que era votado o nefelibata saiu do casulo onde se recolhera do inferno em que lhe transformavam os dias por ser diferente. Por nele haver variáveis incomuns. Sempre tema-objecto de inútil conversa - porque nem sabiam de que falavam - onde o preconceito pontuava todo o movimento - da língua ao pensamento – se o tinham! pensou para si – ergueu-se em toda a sua estatura. Vertical como sempre fora e seria.

Caminhou deixando-se inundar pelo fresco ar da noite.

Aspirou o perfumado vapor que se elevava da terra húmida. Deitou-se num raio de luar e ficou. A sobrevoar um país que diziam de poetas.
Sereia

XVI

Cheira a pólvora… como de resto seria de esperar neste inferno que é a guerra neste país. Tento concentrar-me e focar o meu pensamento em dias felizes, vividos, parece-me agora há muito tempo, junto dos meus filhos e da minha mulher. Enquanto fixo o pensamento nessas imagens, o meu olhar prende-se ao pequeno pedaço de luar que posso vislumbrar através do, também, pequeno casulo em que me encontro, escondido das balas que ainda se fazem ouvir lá fora. Entre a memória do vivido e o presente, sinto os medos a inundar-me a alma, mas rapidamente me concentro na necessidade de fazer história, estar onde outros não estão, e relatar a verdade vivida por quem sofre as atrocidades de um conflito como este, de quem sofre o ostracismo de uma sociedade doente, possuída pelo ódio. A realidade aqui presente está de tal forma longe da realidade do meu país, de brandos costumes, que pela intensidade dos acontecimentos me sinto preso a uma quase loucura, a uma condição de nefelibata, que dificilmente consigo explicar.

O meu companheiro de guerra desperta-me e faz conversa numa vã tentativa de afugentar os medos que tomam conta de nós. Neste buraco apertado tento mexer-me, e num movimento doloroso, colocar o corpo na vertical, pois contam-se já muitos minutos nesta posição incómoda, quase fetal. O tempo atordoa-me o pensamento, ouço o meu companheiro falar, mas não consigo responder… sinto-me incapaz de racionalizar o momento, e, sem dar conta, dou por mim a sentir o cheiro do comboio a vapor, daquela viagem em que o meu avô me dava a mão para me sentir mais seguro, tão tenra era a minha idade. Lembro-me de dizer-lhe que tinha fome, de que a viagem parecia não ter fim… sinto fome, sinto-me agoniado, o que me traz de novo à realidade. É nesta variável entre o passado e o presente que visualizo o sorriso do Pedro e da Inês… só eles me podem restituir a sanidade necessária para vencer o cansaço desta situação.

(Texto é dedicado a Luís Castro, também ele, um herói de guerra que pelos seus olhos nos permite ver o mundo quando ali não estamos presentes. Obrigada, Luís)
Sónia Pessoa

XVII

A dúvida

Tudo começou numa conversa com o vizinho do 4º esquerdo. Quando se encontravam no café, em frente à bica a escaldar, costumavam falar sobre os problemas da actualidade, sobretudo do país. Dependendo do humor do vizinho, um bocado variável, por vezes vinha à baila o futebol. O homem era adepto de um clube em maré de azar e ele compreendia que esse assunto fosse, frequentemente, votado ao ostracismo. Era assim o nosso herói. Compreensivo e amante da concórdia, o que chegava a ser confundido com falta de “espinha vertical”. Eu, que o conheci razoavelmente, sempre achei que o casulo em que parecia encolher-se era a sua protecção contra discussões e mal-entendidos. Era uma daquelas almas que estão sempre bem colocadas num movimento pacifista, entendido como aqueles que começam por praticar a paz.

A tal conversa de que ia falar, quando comecei a divagar, deu-se numa bela noite estrelada e transformou a vida do nosso homem num inferno. Acabavam de sair do café, discutindo o estado calamitoso do país, e depararam-se com um luar imenso que conseguia inundar de luz irreal todo o bairro. Até parecia um bairro bonito, pensou o meu amigo, perdendo o olhar num leve vapor de neblina que pairava no horizonte. E, virando-se para o vizinho, num rompante de que ainda hoje se arrepende:

“Sabe, precisávamos era de uma luz assim para conseguirmos gostar desta terra.”
O vizinho, homem culto mas de pés assentes no chão e pouco dado a divagações, olhou-o estupefacto:

“Homem, você é um nefelibata!”

O nosso herói engoliu em seco. Como responder? Como se responde quando não sabemos o que nos estão a chamar e, ainda por cima, detestamos discussões?
“Talvez, talvez. Até amanhã, vizinho”

Durante dias não dormiu e quase não teve apetite. Não sabia se tinha sido insultado e estava tão convencido que a palavra nem existia que não se lembrou de consultar o dicionário. Mas, quando me contou a sua enorme dúvida, fui com ele folhear o que encontrei mais à mão. E lá estava, entre outras coisas:
nefelibata - indivíduo que, animado de um ideal, não atende aos factos da vida real, positiva”

Benditos sejam os dicionários! Este pôs um sorriso enorme no rosto torturado do meu amigo.

Vida de Vidro

XVIII

Amigos


Acto Primeiro (e único)

Sala antiga, decorada modestamente. Acolhedora também. Um sofá-cama, protegido por uma colcha.
Estante repleta de livros, na sua maioria de viagens.
E outros móveis menores. No chão, um tapete já gasto. Dois amigos conversam.

Cena I

Simão e Gatinha, deitados no tapete, televisor ligado.

SIMÃO (depois de ver atentamente um programa de TV):

-Aqui fechados neste casulo, numa conversa que nem sempre tem jeito, ignoramos o inferno que se passa lá fora. Ou pelo menos fingimos que não sabemos…

- GATINHA (lambendo as patitas, deliciada): Meu amigo, deixei-me inundar por pensamentos positivos, coisa que não tens, e apenas me interessa gozar a paz da nossa casa. Boa comidinha, cama fofa, que mais queres? Olha, vou dormir uma soneca.

Cena II

Simão levanta-se, vai até à estante, pega num livro e folheia-o devagar. O luar entra pela janela.

- SIMÃO: Imensos livros para ler (o nosso dono compra tudo…) e parece-me que não duro o tempo suficiente para os acabar. Costumas ler, minha amiga?

- GATINHA: Não gosto, Simão. Começo a ler e só o movimento do virar as páginas me dá sono. Prefiro dar um passeio pelo telhado.

- SIMÃO: Nefelibata é o que és. Passas a vida nas nuvens e não te apercebes dos problemas que afligem a humanidade. E por extensão a nossa própria existência. Fome, injustiças, calamidades… Afinal em que mundo é que vives?

- GATINHA: Neste pequeno mundo que é confortável. Que cada um cuide de si e deixe os outros em paz.

Sai, deixando Simão a pensar: com “ gente “ assim, é difícil mudar o Mundo. O ostracismo a que votam as questões importantes é preocupante.

Cena III

Gatinha volta, acompanhada de um vistoso gato, amarelo-torrado, a contrastar com o preto e branco da sua companheira.

- GATINHA: Meu caro Simão. Este é o Tareco, o meu novo namorado. Lindo, não é?

- SIMÃO: Como é que este país pode avançar com seres que apenas pensam na diversão? Por acaso, tens alguma ocupação, Tareco?

- GATINHA (antecipando a resposta do Tareco): Não tem. Mas é habilidoso e prometeu reparar-me o ferro a vapor que, como sabes, se avariou ontem.

- SIMÃO: Feitio variável o teu, Gatinha. Fútil e descuidada ainda te preocupas com o engomar da tua roupa.

- GATINHA: Vou deixar a conversa por aqui e dar um passeio com o Tareco. Sabes, Simão, quero deixar bem claro que, não podendo andar na vertical como os nossos donos, é na horizontal que me alegro com o meu gatinho. Fica bem e muda o Mundo sozinho.

Simão, entediado, volta-lhe as costas. Sabe que não vai desistir dos seus ideais mas sente-se o D. Quixote do mundo canino.

Cai o pano.

Vibrantes aplausos fazem-se ouvir.

Zé Viajante

XIX

No meu país não há verdadeiros nefelibatas. A sociedade tem efectivos e seculares paradigmas de ostracismo passivo mas violentamente sentido por quem arrisca o diferente. Poucos têm a espinha suficientemente vertical para deixar o conforto da inútil conversa nas tertúlias de amigos ou de café. A comodidade do casulo onde habitam e arriscar a instável variável feita de desconhecido movimento que os pode conduzir ao inferno do anonimato. Deixam-se inundar pelas mais libertárias ideias, que se evolam como vapor ao luar e continuam a caminhar no medo da perda de estatuto como quem pisa algodão em rama armadilhado.

Atiram frases longas com palavras que quase ninguém entende e fingem manter-se erectos quando a sua real posição é de quatro ou rastejante.

Dark

XX

Fim de tarde

A chegada do fim do dia tinha um qualquer quê de mágico...sentava-me na cadeira de baloiço, velha e rangente, e ali ficava a admirar o lago que se estendia à minha frente. Diante de mim, um bule contendo chá, cujas aromatizadas colunas de vapor eu inalava, deliciando-me com o seu cheiro...

Ali ficava eu em longa conversa com o meu amor de sempre, discutindo o que nos vinha à cabeça, quer fossem as intermináveis viagens que havíamos feito pelo país, quer fosse política, com a minha posição de nefelibata a originar acesas discussões.
Poder-se-ia dizer que estávamos votados ao ostracismo naquela casa isolada, no meio de nenhures, mas preferíamos assim. Afinal onde noutro lugar poderíamos assistir a este movimento tão suave dos dias, onde poderíamos assistir a estes pores-do-sol tão intensos e tão vermelhos a lembrar as chamas do Inferno?
Ali ficávamos a conversar, até a luz do luar inundar o lago, até os seus raios tocarem notas de tom variável na superfície calma das águas, até os pirilampos saírem do seu casulo e voarem em rota quase vertical em direcção à luz....
Era um sítio mágico, aquele...

MAC

XXI

vivo num pequeno casulo. País habitado por nefelibatas não por opção, mas pela mais pura necessidade. "o sonho comanda a vida" é para nós uma forma de vida. a vida ela mesma. toda a variável à norma torna-a instável movimento-inferno que nos destrói enquanto o luar ilumina este pequeno rincão deslizando para as atlânticas águas que um dia o inundarão sobre ele se fechando em feroz ostracismo. Talvez alguma fina linha de vapor residual fique. a indicar o lugar onde um dia existiu um país que se esvaiu em pequenas e inúteis conversas de café sem mais consequências do que uma momentânea e fugaz exaltação.

nenhuma humana forma vertical se manterá à tona.
Amla

XXII

Falamos de um terno amor,

de todo um tempo em espera,

num variável movimento

de olhos cansados

Um país imaginário nos tornamos,

na vertical postura das palavras,

convencionadas, planas,

dotadas ao ostracismo do luar

Sobre a moldura dos nefelibatas

corre lesta a noite rubra

num intocável inferno de asas

E dessa conversa muda

tanto de nós se afunda

do casulo a inundar

no gestual vapor do olhar

Amita

5º Jogo das 12 palavras (último a integrar o livro) "22 Olhares/12 Palavras")- 3ª e última parte


XXIII

sopro ...de .... luz ... No vapor....

esta conversa é de lua. Luar em movimento vertical. E "a.casulo-me" com gestos
de vapor onde teço um inferno que te faça ser o meu país. Ostracismo maior em
que me inundo de ti. longe da realidade. sou-te nefelibata.
Inundo-te. Vem.
"Inundar".me de luz de Luar!

I.M.F

XXIV

Corrida de sábado

Emídio, morreu.

“Deve ter tido uma dor a inundar o peito”. “Uma dor enorme”. Assim falariam gentes sobre o caso. E diriam que Emídio perdera o rumo. Que um passo atrapalhara o outro. Que a vertical deslizara sobre o piso. Diriam, assim, de como Emídio caíra num movimento lento. Morto.

“Enfarte fulminante”, era a voz dos médicos numa conversa mole em volta do corpo, passariam uns minutos das nove. Era já noite.

E tudo se passara em mais uma corrida de sábado. Corriam desde que Emídio tinha menos doze anos do que os quarenta e quatro que perfizera em Maio. Ele e Ubaldo. Corriam juntos desde há doze anos. Os dois, sempre, e alguns amigos.

“Um sábado igual aos outros”, diria Ubaldo, depois, quando lhe perguntassem como tinha sido. Eles iam à frente, Emídio ganhando, a uns escassos dois passos. Uns breves instantes, poucos, e poderia mudar quem seria o ganhador da noite. Sempre fora assim, desde há doze anos. Sábado atrás de sábado, Ubaldo dois passos atrás e Emídio na frente. Nunca mudara quem chegava primeiro Nesse sábado, tudo seria igual. Faltaria, apenas, a palmada no ombro:

- Porra, Ubaldo, ainda não foi desta!

E Emídio ria. Riam sempre os dois.

O amigo de infância, criado porta com porta, carteira de escola partilhada, da primeira à quarta. E o liceu que fizeram juntos, do primeiro ao sétimo. E a mesma faculdade ministrou o curso de um, e no curso do outro.

“O teu irmão de leite”, sempre ouvira sua mãe dizer. Ela que dera o peito que faltara à mãe do amigo. Emídio. Uma cara de anjo, apesar do moreno, quase negro, debaixo de um cabelo em forma de casulo. Um cabelo negro, enorme. “Lindo homem se fará Emídio”, diria amiúde a mãe. E Ubaldo ouvindo. “Que tu também és lindo, Ubaldo!”, acrescentava ela.

Os dois sempre juntos. A primeira viagem a um país distante onde andaram em rios, num barco a vapor. O casamento num mesmo dia de sol. variável, apenas o local onde fizeram núpcias. No resto, nem um, nem o outro, podiam acusar-se de ostracismo mútuo.

“Teu irmão de leite” dizia a mãe, cuidando que era um feito ter ele partilhado a sua mãe com outro. “Um inferno", era o que sentia Ubaldo, andavam pelo liceu. Um irmão moreno e ele com a pele de um amarelo desbotado e o cabelo, oleoso. Um cabelo que lhe veio caindo até ser ele careca ainda nem completara os trinta e cinco. Tudo relevado, e a vida foi correndo. “Ubaldo e Emídio tão amigos!”, eram todos unânimes, dizendo, olhando.

Desde há doze anos, cada fim de tarde, já noite se é Inverno, a corrida de sábado. “Estava luar, recordas-te? Uma lua enorme. E tu viste a vizinha do lado a correr com o cão. Começaste a correr, para a imitar. Lembras-te, Ubaldo?” era o modo de recontar de Emídio. De ir dizendo como começou o hábito, quase vício, das corridas de sábado. “Tu galavas a tipa, heim, Ubaldo?!”, acrescentava Emídio. Ficara combinado, até hoje, como havia dito: “havemos de correr todos os sábados, à noite, de aqui em diante” e selaram com um forte abraço que todos sempre disseram: “tão amigos que são, nem que fossem irmãos”. E a mãe, se ouvia, lá ía explicando: “eles são, sim. São irmãos de leite e muito, muito amigos”.

Mais um sábado. Mais uma vez, Ubaldo saindo de casa com um desejo que o punha doido. “É hoje que o apanho. É hoje que lhe ganho”. Sábado a seguir a sábado, um mês, dois meses, um ano. Anos após anos, até ao dia de hoje.

Emídio gingando à frente. A meta a quase pouco. Uma mão sobre o peito, a boca num esgar que parece riso. Emídio deslizando no ar. Caindo, caindo.

Ubaldo, a menos de dois passos, respira compassado, a cabeça ocupada com o sonho. Ubaldo ultrapassando Emídio. Olhando-o de lado, a ver-lhe a pele morena coberta de gotículas de um suor de esforço. Ubaldo acordando de um grito sonhado. Simplesmente um “ganhei” que sobrava no quarto.

Ubaldo a dois passos do irmão de leite, o amigo de muitas corridas pela vida, sempre um passo à frente. Na passagem de classe. Nas décimas que acresceram um valor à nota de terminar o curso. No cargo da empresa que calhara a Emídio ser quadro superior e a Ubaldo chefe de repartição.

E a somar a isso, os sábados de corridas.

Tudo reviu Ubaldo naquele lapso de tempo em que Emídio caía, rolando. E Ubaldo olhando a araucária que sempre lhes servia de meta.

Só mais quatro passadas. Ele nem dava por nada.

Ubaldo contornou os pés do amigo, caído no passeio em que ainda há nada corria.

Ubaldo, sozinho, na frente. Nefelibata era como ele estava.

Tresloucado, gritando: “ganhei!” agarrado à árvore, abraçado ao sonho, atingindo a meta.

Ganhara, finalmente, ao seu irmão de leite.

Mcorreia
XXV

MEIA DOSE DE AMOR

Vogais e consoantes que me cospem no rosto o teu perfume.

Conversa ou com versos que tento decifrar ao bater de frente com o vazio.

Sensação de queda em estado líquido sem pára-quedas.

Ar em movimento em cada vírgula lançada no pretérito imperfeito que mais não é, nunca foi, nem será, luar.

Ai meu Deus!! E tu aí fragmentada em bocadinhos de vapor em pó.

Esquecida no ostracismo libérrimo dos advérbios de modo a te tornarem vertical.

Torre de vigia das estrofes e sonetos mastigados à luz de vela. Apagada!!

Meia dose de silêncios dactilografados no mapa do teu país.

Onde me perco guiado por uma bússola variável e avariada que uso para encontrar o ponto onde termina a meia dose de amor e começa o inferno gélido de querer ser inteiro como uma merenda nefelibata que apenas as tuas mãos conseguem temperar, refogado poético de inundar o meu mundo com a metáfora fora da meta que juntos personificamos antes de ser só meu o casulo dos nossos delírios. Hoje disjunto com apenas meia dose de amor à meio do nada.

ParadoXos

XXVI

Um sonho. . .

Quem nunca sonhou viver no país ideal? E será que existe?
Tantos países, tantos povos, tantas crenças, tantas mentalidades diferentes, mas todos querem ter uma boa vida e serem felizes.

Ninguém quer viver no inferno como nós citadinos vivemos, mas temos que o fazer. Vive-se uma boa parte do tempo a andar a vapor para o ginásio, para o trabalho, e até para passear... luar ou não, na cidade, quase se não dá por isso. "Não temos tempo"!
O movimento da globalização é bom por um lado, mas veio inundar os países de marginais.
Ninguém quer ser vetado ao ostracismo nem viver num casulo, por obrigação e falta de segurança.
conversa dos políticos não é variável, mesmo os que têm boas intenções. Depois de lá estarem parece esquecerem que antes queriam ter uma atitude vertical!
Fui, sou e serei um pouco nefelibata, sonhar não faz mal a ninguém, não paga imposto e faz bem à mente.

Como diz o poeta “o sonho comanda a vida…”.
Mas também está nas nossas mãos tentar inverter toda esta situação. O velho ditado “a união faz a força” aplica-se bem a este Mundo tão alterado e agitado.
Há coisas boas, mas há mais coisas más e se o Homem teve inteligência para chegar onde chegou, também terá a inteligência suficiente para emendar o que está errado.

Ainda acredito e tenho que acreditar que o futuro dos nossos filhos e netos será melhor.

mj/Skuba

XXVII

Hoje consumi-te numa conversa
e senti meu corpo flutuar,
sobre o movimento de um luar
senti a tua paixão perversa.

Falamos sobre o país e o querer,
sobre o inferno e o amor,
e perdemo-nos no vapor,
que ficou de te perder.

Vem, sai desse casulo escuro,
vem inundar o peito de ternura
que sou neffelibata que perdura,
no caminho que procuro.

Vence o ostracismo que não há mal
e prova esta nossa variável.
Prova da vontade inabalável
deste meu amor vertical.

-=amadorjp=-~

XXVIII

epifania

Eduardo nasceu num país de acrobatas. cresceu num casulo urdido pelo ostracismo a qualquer variável do status quo, em que a diferença era um prenúncio do inferno. Eduardo trazia consigo a semente da mudança. muito vertical, presenciava serenamente o movimento quotidiano dos seus conterrâneos e saudava alegremente os forasteiros. numa noite de luar, em conversa com um nómada nefelibata, sentiu-se inundar pela mais pura paz e entendeu que vivemos todos nas nuvens. só a condensação do vapor é diferente.
Ana Eugénio

XXIX

Faire Pendant

No calor sufocante do Inferno, a alma entreabre o casulo que a reveste e tenta respirar. Lá fora, na abóbada que cobre o lugar, o calor dilui-se por entre espirros de vapor, que infernizam as outras almas em passeio nocturno. Tímida, incauta despe-se da sua pele e voa pelo espaço. Vagueia em ziguezague, está meio zonza, a esfera é pesada, enxofrada e arrepanha-lhe o espírito. Imprime mais movimento ao seu vaguear, como se a rapidez lhe desse o alento que sente desfalecer. O lugar para onde a enviaram é casa de expiação, sente-o. A morte apanhara-a desprevenida. Estivera dançando com o luar, e num pestanejar azul fora-se, lado a lado, com um suspiro de adeus. Depois fora a viagem. O casulo onde a tinham depositado, após pesada, medida e avaliada, tinha-a forçado a uma postura vertical que lhe comprimira os neurónios, de tal forma que ainda não apreendera o todo da sua novel situação. Para já e após um breve vistoria apurara que o lugar era variável em temperatura de acordo com o número de casulos que chegavam. Regressada ao seu alvéolo, prepara-se para descansar um pouco quando entre ouve uma conversa de outras duas almas, por sinal um pouco afogueadas que lhes confere um tom rosado de quase felicidade. Conversavam, assim, as energias:

-O ostracismo grassa lá por cima.

-Nem me diga. Os meus últimos dias foram péssimos…Não me ligavam nada. Posta assim de lado como se a lepra me tivesse tomado.

-Mas então porquê, o que é que a querida fez, ou não fez?

-Olhe a querida sabe que no meu país, pois a menina vem de um outro mais a norte, e desconhece as regras, mas como lhe contava, lá por bandas do Oeste”quem não é por mim é contra mim”. Uma frase já muito antiga, pisada, descartada mas que serve sempre para vestir quem calça os corredores do Paço.
-…?
-Eu explico, querida. Tal como na moda, as ideias devem faire pendant, faz parte das alíneas do Tratado Europeu. Não somos nós Europeus, todinhos, pelo menos nesta secção? Veja as benesses que temos em relação aos pobres chinesitos…

-Lá isso é verdade, temos mais direitos…muitos mais…mas também eles não estão habituados, não lhes deve fazer impressão.

-Rica, mas como lhe dizia, tive assim um ataque de rebeldia e decidi vestir a minhas ideias. Foi o fim, querida. O fim! Fui logo posta de lado, riscada e enxotada, assim à laia de mosca varejeira. Senti-me a coisa mais abjecta apenas porque pensei, veja lá, mas fiquei tão desgostosa, ferida, magoada que tudo isto acabou por inundar o meu ser, e assim finei-me.

-Pobrezinha da rica. Olhe, myself também…, estou ainda a acomodar-me, pois que como sabe, só cheguei após o resultado do referendo na minha Ilha. Naturalmente que votei Não. Logo, fui considerada persona não grata e expedida directamente para este lugar. Lá fora vive-se numa banheira de espuma sem água. Só marketing. Fazem-me lembrar os nossos duendes mais os potes de ouro, só lendas….Como vê é tudo igual, por isso é que estamos na ala da Europa que por sinal é enorme.

-Pois a menina tem toda a razão. Andei eu uma vida inteira a pensar e a penar pela Europa e afinal vejo que este lugar está repleto. De boas intenções vaiadas. Um dia destes, o continente passa a ser aqui. Pelo jeito parece que a população aqui cresce a olhos vistos. Se excluirmos o ar, até se está bem melhor do lá em cima ou em baixo, olhe que perdi o tino, e depois, querida, podemos ter as nossas ideias, não podemos?

-Ah, claro que sim, e até fazemos manifestações, e somos ouvidos… veja uma coisa quase inaudita para mim… desde que a Ilha passou a estar em Paz, como dizem, tudo deixou de ser ouvido. Era lá para os lados de Bruxelas que cozinhavam as nossas vidas, sem sequer se dignarem a saber o nosso prato preferido. Tudo igual. Uma vergonha.

-Um horror, rica. Sabe que ao olhar para trás vejo que não passei de uma nefelibata. Nem me apercebi que estava rodeada de tartufos e mentecaptos. Fico estarrecida. Agora!

-Ai rica, que a menina fala caro. Também só pode” né”? Lá nas suas bandas são todos bem-falantes e pouco mais…Um país de linguajar pomposo para esconder a pobreza de…

Ouve-se um estrondo, seguida de uma algazarra, logo sobreposta por uma voz imperiosa. As duas almas calam-se. Escutam. Então a alma lusa, aflita contrapõe:

-Ó rica, ó rica, cale-se que vem aí o meu chefe, deve ser engano, mas se me apanha a falar estas coisas ainda me despromove e …Lá vou parar ao quinto dos infernos! Sabe como é, não sabe, rica? Sempre à faire pendant!

Mateso

XXX
Nas Velas de um Sonho

Julho de 2008 - finalmente tinha chegado o dia de soltar amarras e seguir a bordo daquele pequeno veleiro. Apenas um par de horas mais para zarpar, um tempo que parecia interminável e tornava aquela espera um verdadeiro inferno.

Voltou a olhar para o mapa pela milionésima vez seguindo com o dedo a linha vertical há muito traçada que mostrava a rota a seguir. Como destino um país mágico, de lendas e de Vikings.

Aldeias de velhos Lobos do Mar, pequenas enseadas onde o tempo era tão variável que por vezes era possível ser-se surpreendido pelas quatro estações do ano num só dia, refúgios de piratas condenados ao ostracismo_________tudo isto e muito mais fervilhava no imaginário da sua mente.

Absorta em seus pensamentos de quase nefelibata, nem se tinha dado conta que navegava já embalada no movimento suave da ondulação do mar báltico.

Entrou e sentou-se à mesa onde a conversa corria solta entre os seus companheiros de aventura, das canecas à sua frente soltava-se um vapor aromático que sorveu com prazer.

Em breve o luar viria inundar de prata aquele casulo aconchegante onde se encontrava.

Fechou os olhos e sorriu, sim, sentia-se verdadeiramente feliz...

Micas

XXXI

Insanidade incipiente

Parte II(continuação do texto do 4º Jogo)

Acordou. Estava viva. O luar deixara de inundar de sombras a capela e qualquer movimento adquiria finalmente vida real. Apenas a poeira fina se lhe colara à pele… permanecera desacordada bastante tempo.

Todos os sinais lhe tinham ditado que se encaminhasse para a capela: A noção que a caminhada para o inferno da loucura se havia iniciado tornara-se flagrante.

A luz que atravessava a bela rosácea fê-la descobrir algo. Sentiu um calafrio… Um esqueleto jazia abandonado na escadaria superior da capela. E aquele ser desmembrado entrelaçava-se no enigma de ainda estar viva.

Chegou mais perto e descobriu uma adaga, cravada na vertical, e que assim se ficara enquanto o ser se decompunha. Observava toda aquela encenação macabra e a incógnita de tudo aquilo matraqueava-lhe o cérebro… Porque não reparara em nada quando entrara?

Procurou mais detalhadamente e encontrou um anel em ouro velho com rubis embutidos. Era um anel de família que passava de pai para filho. Quem ali jazia era seu pai. Era a primeira resposta exacta que encontrava. Recordava-se de, em criança, dançar por entre os raios de luz multifacetados, que os rubis reflectiam, no “PAÍS das borboletas” – um jardim onde tudo se tornava mágico. Lembrava-se do sorriso do pai ao vê-la tão feliz, dançando, nefelibata, de tão criança que era. A inocência espelhada nos risos dos dois quando finalmente caía tonta de tanto rodopiar.

Mas numa tarde sem nome, a mãe numa longa conversa contara-lhe da existência da capela, dos que para ela caminhavam como elefantes para morrer e da loucura que aparentemente assolava o lado feminino da família – o pai permanecera calado, os olhos azul pálidos quase transparentes e não fora em seu socorro como era habitual. A sua juventude fê-la querer esquecer as palavras da mãe que eram como vapor que se diluía na atmosfera. A loucura tinha que ser irreal… Sentia-se tão plena de vida…

Até ao dia em que o pai e a mãe se haviam evolado da sua vida e o terror começara a assombrá-la afastando-a do casulo de serenidade em que se escudara até aí, pois as palavras da mãe ecoavam longínquas, ainda que imbuídas de brumas.

Continuou a olhar em redor e descobriu em cima da ara um outro anel. Este era em ouro branco, trabalhado e com pequenos diamantes. De beleza singular. Era da mãe, tinha a certeza. Cada vez mais a sua mente parecia entrar em nebulosa… surgiam peças que não se encaixavam na verdade de todos os tempos… a morte do pai não fora natural e a mãe parecia ter abandonado pistas ininteligíveis. A noção da sua insanidade levara-a à capela e descoberta atrás de descoberta tudo se desmoronava. Nada fazia sentido.

Os suores frios voltaram.

Os raios de luz que atravessavam a antiga rosácea incidiram no Cristo. Abafou um grito. Alguém fizera com que gotas de cera caíssem no Cristo e o seu olhar estava coberto de lágrimas de cera. Alguém ali estivera enquanto se mantivera inconsciente. Algo estava errado, alguém pretendia mostrar-lhe a capela de uma outra perspectiva.

Percorreu-a em silêncio.

O pai assassinado e abandonado, o anel da mãe, as lágrimas de cera do Cristo… algo tinha que fazer sentido. Ela era a única variável na equação… ninguém poderia prever quando ali iria ter.

Observou melhor o nicho onde estava o Cristo e descobriu mais duas pequenas rosáceas, tal como sucedera na entrada para capela. O método deveria ser o mesmo. Empurrou-as.

Percebeu que se abria um cofre. Com as suas pequenas e ebúrneas mãos tacteou e retirou o que lhe pareceu ser um diário antigo. Ao abri-lo percebeu que a letra era a da sua mãe.

Falava das diversas gerações em que o lado feminino fora votado ao ostracismo de uma falsa loucura. De como os homens da família alimentavam esse logro para não perderem poderes perante os seres que os geravam.

E nas últimas páginas dirigia-se-lhe: “És a última desta geração. Iludi o teu pai fingindo que a minha loucura estava em ebulição… e ele veio atrás de mim. Ter-me-ia morto e tive que sacrificá-lo. Por certo, um dia serias a próxima.

És livre, guarda os anéis, a adaga e a tua insanidade inexistente, neste cofre. Nunca mais se abrirá. Encontrarás ainda neste diário, uma missiva de adopção falsa. Para o mundo ter-te-ei adoptado e a demência morreu comigo. És dona e senhora de todas estas terras e depois de teres entrado na capela quem dela cuidava partiu esquecendo todo este horror. Tal como eu.

Vive filha!"
Raquel