quarta-feira, maio 21, 2008

3º Jogo das 12 Palavras - 2ª parte







XI
FANTASIA


Sentou-se na cadeira junto da secretária onde tinha o computador e ali se manteve, calada, indiferente à luz da manhã que atravessava devagarinho a vidraça da janela da sala. O sono pesava-lhe no corpo, por causa da noite mal dormida. Desde a véspera que aquela preocupação lhe bailava na cabeça, uma espécie de obstrução no fluir habitual do seu pensamento. Olhou distraidamente em redor, como se nada lhe prendesse a atenção, mas acabou por se deter na tapeçaria pendurada na parede à sua frente. Fixou-a durante alguns minutos. Para o que lhe havia de dar, àquele eremita, lá no seu eremitério… Inventar um jogo destes! Uma espécie de tapeçaria bordada com as palavras de muita gente… Como é que eu vou encaixar, num texto meu, 12 palavras previamente escolhidas por outras pessoas? Nem sequer há um esboço do desenho… Bom, o melhor é deixar-me de perguntas e meter mãos à obra…

Levantou a tampa do computador e carregou na tecla para o ligar. Aguardou os minutos do costume até entrar no mail. Lá estavam elas, pousadas sobre o branco da folha virtual, todas direitinhas e bem numeradas de alto a baixo, cada uma envolta no silêncio de si mesma. Releu-as uma vez mais. Voltou atrás e repetiu a palavra exponente em voz baixa. Pois, bem sabia que se queria fosse um jogo divertido e criativo, mas como conseguir tal proeza com palavras como esta? Quem se teria lembrado dela? Como encaixá-la no meio das outras, aparentemente tão harmoniosas entre si? Orvalho, ou pena, levavam a imaginação a compor textos românticos de amores e desgostos, mas esta só lhe lembrava tribunais e um juiz conselheiro de toga e ar sério a ponderar causas expostas por advogados de defesa a discorrer sobre factos e a afastar, ou tentar justificar, as culpabilidades dos seus clientes. As conhecidas vulnerabilidades do ser humano postas à vista na barra do tribunal, os seus actos escrutinados ao pormenor na lista infindável de alegações e de testemunhas apresentadas.

Voltou à lista de palavras propostas para o jogo e quase entrou em desespero de morte. Apetecia-lhe fazer com elas o que uma certa criança que muito bem conhecia costumava fazer com os brinquedos quando se zangava… Seria engraçado imitar o tal menino e atirá-las também ao ar como se fossem brinquedos, e vê-las cair, sem regras gramaticais, à toa, de cada vez em seu sítio. No meio de uma frase ou isoladas ao canto da página, acompanhadas ou não de vírgulas, pontos, ou outros sinais de pontuação, e atrapalhar quem as lesse depois naquela confusão. E que tal escrever as vogais e as consoantes de uma palavra em ordem inversa, como por exemplo ateuhlis em vez de silhueta, deixando os leitores a congeminar histórias de ateus e religiões?
Riu-se a imaginar o alvoroço. A seguir desligou o computador, levantou-se, e saiu da sala. Mais tarde decidiria o que fazer.
M

XII

A criança pela manhã corria
Alheia a qualquer obstrução
Rumo àquela profunda alegria
Que lhe inundaria seu coração

Sua silhueta era liberdade
Ao afastar o orvalho matinal
Indiferente à vulnerabilidade
Em demanda do Santo Graal

Seu conselheiro interior
Em voz baixa lhe murmurava:
A morte é uma tapeçaria
Que, com a vida, nunca acaba

A alegria por fim a si chegou
Exponente duma eterna cena
O seu gatinho por fim alcançou
Entregue ao momento. Sem pena!
José António

XIII

A morte é o exponente
De uma vida bem vivida:
A criança de repente
Tornou-se um homem diferente
E viveu toda uma vida...

Ao morrer, viu perpassar
Como uma tapeçaria,
Tudo o que fez rir ou chorar,
A pena, a dor e a alegria...

Veloz e em silhueta
Viu da vida todos os contornos...
Sentiu a vulnerabilidade
De se afastar dos seus sonhos
E de tudo o que conhecia...

Sentia que perdia
Da vida o alento
E, em dado momento,
Desejou um conselheiro
Que ajudasse a passar
Este momento primeiro
Do outro lado do olhar...

Ultrapassando a obstrução
Criada pelo seu passado,
Abrindo o seu coração
Ao que lhe reserva o fado,
Descobre que cedo chega
Ao outro lado da manhã,
Onde reluz o orvalho
E nenhuma prece é vã.

E com essa confiança
Recupera a criança
Que em tempos foi, e avança
Em direcção à Liberdade
E à Terra da Verdade.
ISABEL

XIV

Quero

Quero recomeçar de novo, quero voltar a ser criança,
Quero afastar de mim a marcha inevitável até à morte.

Quero voltar a escrever pela primeira vez o meu nome nos cadernos escolares,
Quero voltar a fazer mil tropelias elevadas a um qualquer expoenente matemático.
O tempo é um bom conselheiro, dizem eles,
Mas a mim faz-me sentir como uma qualquer tapeçaria velha,
Faz-me sentir o significado da palavra vulnerabilidade,
Faz-me sentir que sou apenas uma silhueta daquilo que já fui.

Quero sentir-me de novo leve como uma pena,
Correr mais veloz que o vento,
Sem qualquer obstrução ditada pela idade.

Não quero desaparecer como o orvalho matinal,
Apenas quero durar um pouco mais...
Apenas...
Até amanhã de manhã...
Mac

XV
Ao filho morto

Manhã. A morte, exponente de fraqueza, chegou cedo, como uma obstrução. Meu filho era criança ainda. Mais: parecia uma silhueta de orvalho. Agora, olho seu corpo e choro.
Na tapeçaria da vida, o fio que nos compõe às vezes se rompe. Dizem que o tempo, sempre um bom conselheiro, reunirá de novo as pontas a ponto de nos esquecermos da dor, da pena. Dizem. Mas ao ver meu filho morto, tenho certeza que será impossível afastar de mim a vulnerabilidade que passou a ser minha vida e minha fé.
Rubens da Cunha

XVI

Despedida

Luís Abreu, o sr.Conselheiro, como ainda era conhecido, naquela fria manhã de Fevereiro, sentou-se à sua velha secretária e olhou pela janela através da qual ainda podia ver as gotas de orvalho a brilhar sobre a relva do jardim. Por trás de si, na parede, encontrava-se pendurada aquela tapeçaria com cenas de caça do século passado, oferta dos seus mais directos colaboradores.
Afastou a foto do seu filho mais velho, ainda criança, tirada exactamente no dia do seu segundo aniversário, pegou na caneta de tinta permanente com aparo de ouro, oferta de Inês, a sua companheira de muitos anos mas que, infelizmente, já estava à sua espera na terra donde não há regresso e, começou a rabiscar o que viria a ser uma carta, uma carta de despedida mas de aconselhamento, também.
Ainda era considerado o exponente máximo na L.A, empresa que dirigia sabiamente já ia para duas dezenas de anos, mas, queria afastar-se, pois pouco tempo de vida já lhe restava; segundo a opinião médica a morte estava perto e Luís Abreu queria ter ainda tempo para fazer algumas recomendações ao seu filho que iria dar continuidade ao seu trabalho.
A vulnerabilidade da sua saúde estava a tornar-se numa obstrução às tomadas de decisão que eram precisas para o bom andamento da L.A.
Embora ainda conservasse uma elegante silhueta, o coração estava rápida e constantemente a lembrar-lhe que a hora da partida estava perto. Naquele momento e sem saber porquê, veio-lhe à memória aquele poema de Camões:
Perdigão perdeu a pena
Não há mal que lhe não venha”

Beno

XVII
Sei que tens o vento por conselheiro.
Mas vês a morte como exponente maior.
Imaginas uma silhueta fantasma, que se vem interpor entre o teu ontem e o teu amanhã.
Tenho pena dessa vulnerabilidade, que vai sendo uma obstrução àquilo que te deveria preencher totalmente.
No entanto, algo te diz que ainda estás muito a tempo de afastar todo esse orvalho que te salpica, de modo a percorrer, sem freio, toda a imensa tapeçaria que tens pela frente.
Faz isso!
É o vento que te sussurra que ainda agora é manhã e que o sol mal começou a ensaiar os seus primeiros passos de criança. Não fujas de o escutar mais uma vez!
Fa Menor
XVIII

Sou hoje a voz exponente da manhã que ousa o rumor de silhuetas amáveis na floresta dos gestos ávidos. Orvalho-te contra o cerco da vulnerabilidade da morte. E o meu coração é criança cheia de estrondos e plumas a afastar a renda/tapeçaria do grito majestoso. Terno e precário. Conselheiro último da trama dos dias que não resume nem a pena nem o pó. Antes a rigorosa obstrução que me afasta da claridade. Sendo alma. Líquido exponencial do abstracto. I.M.F

XIX
A morte da infância

Lembrava-se daquela manhã marcada na lonjura da infância. Desejava afastar a recordação mas sabia que voltaria, recorrente como a sensação de vulnerabilidade que lhe deixava. Ainda sentia o pisar suave da tapeçaria da sala dos avós. Parecia abafar a vida, afastar a possibilidade de um grito. Um grito, sequer. Sentia a morte rondar por ali. Não era a morte a ausência da vida? Tão criança era, e já lhe sentia o arrepio. Mas naquela manhã era pior. Quis correr para o quarto do avô. Homem rude, nunca lhe tinha demonstrado grande afecto, mas nem por isso deixava de ser o seu melhor conselheiro. Uma espécie de exponente da sua formação, alguém que lhe abria as portas do mundo dos adultos, confuso e traumático. Ou talvez apenas causador de pena. Dava-lhe segurança avistar a silhueta já curvada em contra-luz na janela do quarto. Mas não naquela manhã de orvalho gelado. Um nó na garganta não o deixava respirar, como se ali fosse ficar em permanente obstrução. Entendeu, sem que ninguém lhe dissesse, que o vulto do avô seria, daí em diante, apenas uma lembrança. E o seu choro silencioso ecoou como o grito que nunca lhe tinham permitido dar, naquela sala.
Vida de Vidro
XX
Antes de me deitar, peguei num lápis para desenhar numa folha de papel a cara de uma criança que me tinha impressionado, tinha-a visto numa tapeçaria que estava pendurada, no corredor da casa do velho Conselheiro e que tinha estampada na cara inocente um ar de vulnerabilidade aflitivo. Que pena senti daquela pobre criança!
Pela manhã e para afastar essa má impressão, que me fez passar uma noite mal dormida, fui passear pelos belos jardins circundantes onde o orvalho se via nos relvados, nos canteiros floridos e coloridos e de onde inalavam odores doces, de uma beleza … do outro lado vi a silhueta de uma estátua de mulher cujo exponente era gritante e parece ter pertencido a alguém cuja morte até aos dias de hoje era desconhecida a sua causa, graças à obstrução de provas e falsos testemunhos dos intervenientes que viveram lá pelo século XVII, de acordo com a lenda que se conta por aquelas paragens.
Mais um fim-de-semana bucólico e sereno se passou numa das muitas casas apalaçadas que temos por esse País fora e que são salvas pelo turismo de habitação para a sua preservação.
E agora, retomemos a rotina e a realidade…
mj

XXI

É amena a hora e o tempo casto.

Na flor, o orvalho da manhã
estende-se em planos
indeléveis, indefinidos, breves,
qual pena em mão de criança
que do sonho nada teme.

E, sorrindo à brisa, se balança
indiferente ao conselheiro sem idade -
Exponente pluriforme da morte -
em incauta obstrução à vulnerabilidade.

É amena a hora e o tempo casto.
Da silhueta ténue da rosa-menina
urge afastar densos passos
sobrepostos na tapeçaria da vida.
Amita

4 comentários:

Heduardo Kiesse disse...

De uma ponta à outra, não há dúvidas, estamos a bombar!!

Edu
paradoxos

:-)

Fá menor disse...

Tenho que voltar mais vezes para ler tudo...
mas estou como o Edu: estamos a bombar!
Força pessoal!

Fa

Bichodeconta disse...

Confesso que estou deveras a gostar deste desafio..Encaixar as palavras é um jogo e há aqui pessoas que jogam particularmente bem com as palavras.. Deixo a todos um beijinho e o desejo de final de semana feliz..Ell

Auréola Branca disse...

Ainda estou a ler, e a cada texto novas visitas e conhecimentos aos autores.

Muito bom.