segunda-feira, dezembro 22, 2008

9º Jogo das 12 Palavras - 2ª parte












cartas de amor

Julieta entrega ao seu patrono uma carta que decididamente enaltece a sua bondade, sem paralogismo nem sofisma, em que desvenda a sua alva mudança de intenções e agenda um iluminado reencontro com o mais doce oráculo do seu coração.
ana eugénio
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E queria ser a alva do dia em que nasceste.
Eu não queria ver a escuridão no teu olhar.

Eu queria a bondade do teu sorriso.
Eu não queria a tristeza em tua alma.

Eu queria a tua carta e escritos belos.
Eu não queria o teu silêncio, que doía.

Eu queria ver o mar. Decididamente, a teu lado.
Eu não queria lá estar e não te ver.

Eu queria desvendar os teus mistérios.
Eu não queria, porém, os teus segredos.

Eu queria,iluminado, ter-te aqui.
Eu não queria, Deus me salve, ter-te longe.

Eu queria a mudança. Radical.
Eu não queria o marasmo, o não viver.

Eu queria, no oráculo vida, tua resposta certa.
Eu não queria, meu amor, desenganos.

Eu queria ter certezas, boa-fé.
Eu não queria, na verdade, o paralogismo de uma reacção infantil.

Eu queria ser o patrono do teu amor.
Eu não queria, por sinal, ser o teu acusador.

Eu queria o reencontro com a Vida.
Eu não queria o sofrimento e a apatia.

Eu queria, sem sofisma o teu amor por inteiro.
Eu não queria, minha vida, as meias-tintas.

Zé-viajante




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a viagem
a estrela d' Alva anuncia a mudança. as transformações do dia são, dcididamente já bem visíveis.
acelero a passada para aproveitar a orientação que as estrelas me dão. elas são a carta pela qual, sem sofisma ou possível paralogismo me oriento. não só no plano físico, geográfico, como noutros planos menos visíveis a olhares despreparados. não iniciados.
sem elas paro. alimento-me e descanso. preparo-me, física e espiritualmente, para nova caminhada mal surjam no céu.
através delas desvendo o caminho a seguir iluminado pela sua luz difusa por vezes fortalecida pela fria luz lunar.
preparo-me para o reencontro com o meu patrono. fonte de bondade. oráculo por onde a voz dos deuses passa tal a sabedoria e as profecias correctas e justas que pronuncia.

estendo, no chão, o manto de viagem que me cobre e onde um pouco mais tarde repousarei, acendo uma pequena fogueira e nela aqueço, hidratando-os com água, os alimentos secos que trago na mochila, enriquecendo-os com ervas colhidas ao longo do dia.
agradeço os alimentos e todas as dádivas recebidas. finalmente deito o corpo e repouso.
é então que o cansaço começa a inundar os músculos até que se liberta e o sono me cobre de paz.
Amla
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Rompimento por palavras óbvias

Decididamente, este é um assunto que temos que esclarecer. Não entendo porque insistes que não consegues desvendar o sentido do que digo. Achas-me algum oráculo que só pode ser entendido por quem seja iluminado pela alva luz da clara percepção? Em cada reencontro, é recorrente essa tua ideia de que cada raciocínio meu é um sofisma para te induzir em erro. Necessitarás por acaso dum patrono para te ajudar na aprendizagem da língua portuguesa? Não há nenhum paralogismo no que falo, diria antes que o meu raciocínio é uma carta aberta. É muita bondade minha, isto de estar aqui a gastar palavras para te explicar que a minha presciência me avisa de que, no nosso mútuo entendimento, só pode haver mudança para pior. Por conseguinte, solicito-te que não me importunes mais, dada a nossa óbvia desavença no que respeita ao uso da pátria língua.
Vida de Vidro

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Lado negro

Mais uma alta de mais um internamento.
É desta, Tó? – Perguntei-lhe quando o fui buscar.
Sim, é desta. – Respondeu.
Se eu pudesse acreditar nisso! Queria tanto acreditar! Mas, decididamente, não me parece que vá ocorrer mudança no seu comportamento. Até porque o seu aspecto e a sua voz o denunciam. A droga e a delinquência encontraram nele poiso.

Encontrei-o, ainda nesse mesmo fim de tarde, na igreja. De pé, bem no meio, muito embrenhado com algo na mão… parecia um livro de cânticos, ou um papel… talvez uma carta ou oráculo do Santo Patrono.
Seria muito bom que esse reencontro com o espiritual lhe permitisse sair de lá iluminado por uma alva luz, com a qual pudesse desvendar o que constitui um mistério para ele, e que mais não é do que todo o seu tesouro, que enterrou não sabe bem onde, mas que se encontra dentro de uma caixinha envolta num papel colorido de bondade.

Mas não. A ida à igreja deve ter-se revestido de algum sofisma, disseram-me depois.
No entanto, custa-me pensar que possa ser assim. Preferia não ver as pessoas pelo seu lado negro, mas o receio de ser atraiçoada por algum paralogismo leva-me a não poder descartar certas possibilidades.
O lado negro muitas vezes leva vantagem.
Fa Menor
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Profecia

não foi paralogismo, o oráculo de outrora.

o sofisma foi intrinsecamente verídico.
Sustentado por um patrono
decididamente crente.

apesar da chama florir alva,
fés cegas sucedem-se em exemplos perdidos.

mas o reencontro é alcançável.
qualquer caminho é iluminado!

e a carta,
bordada em linhas de bondade,
une a liturgia dos tempos, proclamando:

na mudança aguarda o desvendar!

VFS
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Luz
- Encantei-me com a bondade de suas palavras escritas em pedaços de plantas e papel rugoso. A carta que idealizei nunca me foi entregue. Imaginei que cada inferência reproduzida em seu pensar poderia algum dia ser-me dirigida. Porém, deparei-me com um sofisma. O paralogismo surtiu efeitos a curto prazo. Não considero a hipótese de sonhar a longo prazo.
- Mas, quem te disse que os sonhos têm barreiras? Cada um é livre e patrono de si!
- Decididamente, a mudança é um dos chinelos no encalço da minha vida. O outro será um reencontro comigo quando desvendar algo iluminado… Talvez o oráculo me guie pela Luz alva e me transmita um arrepio de amor.
Eli Rodrigues

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porto de abrigo

recordo a sua voz a dizer-me em tom de oráculo: toda a cisma gera sofisma.
Alva, era um ser iluminado. Decididamente tinha a capacidade de desvendar a alma do ser humano nos seus mais esconsos recantos e mistérios.

alma de grande bondade percebia, antes de qualquer outra pessoa os ventos de mudança, quer fossem colectivos quer individuais. nunca usou em seu proveito esse poder ou dom. nunca utilizou qualquer paralogismo nas respostas que nos dava quando inquirida sobre alguns assuntos, por mais melindrosos.

a vida segue o seu curso e no decurso desta muitas vezes nos afastamos geograficamente de pessoas significantes em nossas vidas. foi isso que aconteceu entre mim e Alva. e digo, entre mim e Alva porque fui eu quem partiu. ela continuou na velha mansão a cuidar de tudo e de todos.

a chegada da carta, escrita pelo seu punho. com a sua letra alongada, quase cuneiforme, deixou-me intrigado. várias vezes a virei e revirei antes de me decidir a abri-la.
anunciava-me o nosso reencontro, pois chegaria dentro de dia e meio.
se esta viagem era, por si, razão de surpresa dado Alva nunca ter saído da terra, da mansão e terrenos ao redor. o facto de me designar por patrono deixou-me estupefacto e curioso.

se justiça havia no mundo e alguém merecia essa designação era ela. não eu.
o que significaria tal inversão de papeis ao dar-me tal tratamento?

tentei manter-me imerso no trabalho pois o facto inédito da viagem e o título usado tornavam-se uma inquietação cada vez maior.

chegada, falámos de tempos vividos. deu-me notícias de nascimentos e falecimentos, de alterações ocorridas na terra durante a minha longa ausência.
sabia que de nada serviria questioná-la sobre os dois factos que tanta estranheza me causavam.
falaria quando chegasse o momento certo. o equilíbrio necessário estivesse reposto entre nós depois de tanto tempo.

falou e eu, estupefacto, nada fui capaz de dizer. viera anunciar-me as medidas a tomar dentro de poucos dias pois chegara a hora de partir. viajar para o outro lado do véu, disse.

as lágrimas afloraram meus olhos, a alma encolheu-se dentro de mim. voltei a ser o menino de quem sempre cuidara e perdido me senti.
estivesse onde estivesse, sabê-la viva, na mansão, era a fonte de toda a minha energia e segurança. agora o meu eterno porto de abrigo movera-se para vir dizer-me que chegara a hora, que se ia….
depois me disse que eu era muito mais do que imaginava. não era um homem comum.
ao longo dos séculos sempre viera para jogar um papel importante no seio da humanidade. ela fora a minha guia nesta vida, mas os meus poderes eram superiores aos dela. eu era o patrono. ela a eterna seguidora, a discípula. mas estava honrada com a missão que tivera nesta encarnação.

chegara a hora. devia retornar à mansão e preparar-me antes da sua partida, pois havia muito trabalho a fazer. sabia-me pronto. só tinha que aclarar a visão interior e re-ligar-me ao meu eu superior de que a vida mundana me mantivera deliberadamente afastado até ao dia certo. e esse dia chegara.
TMara
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em boa hora

foi sem sofisma que me ofereci para te levar ao hospital. é certo que tirara a carta havia pouco, mas, decididamente sentia-me apto e sem receios.

o caminho, iluminado pelos faróis deixava-se desvendar e a confiança crescia em ti.
o carro, de boa cilindrada, respondia bem às mudanças e a tua bondade intrínseca fazia-me confiar que ficarias bem. que a morte te não colheria ainda.
sempre foras o meu patrono. meu anjo tutelar.
de tua boca, sem qualquer paralogismo, saíam verdades como da de um oráculo.

bendisse a hora do nosso reencontro, pois podia assim prestar-te serviço.
levar-te ao lugar onde a morte seria de ti afastada.
estavas isolado no campo. deixaras os telefones na cidade e a perna partida, as costelas esmagadas, ao que tudo indicava a perfurarem-te um órgão, impediam-te a condução.
se não houvesse chegado naquele instante morrerias esvaindo-te em dores e sangue.

falava-te das pessoas que conhecíamos, dos locais por onde andara, tentando manter-te acordado.

a luz da alva anunciava o aproximar do dia e também da cidade. do hospital.
ouvi-te suspirar e de seguida o silêncio abateu-se sobre a viatura. chamei-te: Eduardo…
insisti, sentindo o coração disparar de medo. respirei fundo para acalmar. tornei a chamar-te suavemente e, tirando uma mão do volante, toquei-te ao de leve.
Ouvi a tua voz. fraca mas tua, perguntar: chegámos?
Dark

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Sonhar, sempre!

Escrever uma carta, um artigo, um livro e desvendar o que mais profundo nos vai na alma pode ser um paralogismo, decididamente.

Pode-se escrever muito e nada dizer, pode-se imaginar situações, ter projectos, sonhos, viajar por países onde nunca estivemos, passar por quem não somos... É um exercício cujo patrono da boa escrita nos ensina com a sua bem conhecida bondade e sabedoria.

No reencontro da leitura com a escrita senti-me iluminada e recomecei a escrever na alva de uma qualquer madrugada, dando-se a esperada mudança, brotando uma prosa simples, ao sabor da pena, do que me vai na alma, na necessidade de deitar para fora, quero dizer, para o papel o que, muitas vezes, não posso dizer ou não consigo. Dizer a verdade, é bonito e leal, mas nem sempre se pode fazê-lo, com a agravante de magoar quem não queremos e não conseguir articular as palavras certas.
Querer dizer sempre o que se sente é um sofisma.

Dediquei-me à escrita com amor e alma, dedicação e empenho e em breve espero publicar um livro, mais um que encherá as estantes de tantas livrarias que pululam a cidade e os Centros Comerciais, mas se é um sonho, porque não realizá-lo? Os sonhos comandam a vida e se os deixarmos de ter… morremos antes de morrer. Não há quem o leia, quem o compre, quem o saiba entender, problema deles, não sabem o que perdem… talvez gostassem e se comovessem com as minhas histórias.

Dei trabalho a umas tantas pessoas, realizei o “meu sonho”, assim, fui mais feliz, ganhei mais uma batalha, saltei mais um obstáculo.

Poderia ter sido um oráculo mas ao acordar, porque o cansaço instalou-se de tanto escrever, olhei o computador e ali estava um texto à minha espera.

Deixar de sonhar . . . nunca!
MJ
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Clareava

Nem era pela luz difusa que entrava pelo cortinado depois de atravessar a renda.
Nem era pelo tom leitoso que escorria de uma frincha estreita a afagar o tapete e a esgueirar-se entre as pregas do lençol que lhe cobria o corpo.
Sabia que era chegada a madrugada, por uma certeza que a ia inundando, que a fazia remexer-se, entreabrir a boca, dar pequenos estalidos meio babosos, entreabrir e cerrar os olhos, e puxar, com uma quase fúria, a roupa para junto da orelha encolhendo-se no corpo até quase lamber os dois joelhos.
Era esse trejeito de se deixar ficar mais um instante, de ronronar como cria mal nascendo, que lhe anunciava a alva a noite a ser engolida pelo dia seguinte.
O quarto quase a ficar iluinado

***
Fora uma noite grande.
Ouvia-se dizer.
Que começara numa chuva pingando.
Que nem trovoada, nem o céu nublado.
Que fora uma revoada, um silvar de vento levantando roupas em estendal e a chuva engrossando.
Que a cada um nem sobrara o tempo de perceber de que estava morto.
Ou talvez:
Os que ficaram olhando o escorrer das terras em cima de um empedrado preso por aquilo a que se diz milagre.
Os que olharam a sua morte ali rondando.
Os que ficaram à espera, talvez rezando orações que nem sabiam, que a lama, as árvores, a casa do Batista e a casa da Hermínia, fossem despenhar-se noutro local que não aquela ilha de onde observavam – telhados, uma chaminé, bocados de paredes, um piano, duas colheres de pau e um boi. O senhor padre tentando boiar e escorregando.
Os que terão ficado para desvendar o acontecido, esquecidos do que nem viram, que eram eles num segredo para que a morte os desapercebesse.

***

Terá ouvido os ruídos de dentro do que julgou ser sonho.
Talvez tenha pensado que fosse o reencontro com o rumor da cidade que despertava lá em baixo.
Um paralogismo que era ela pensando, entre a noite e o ser já dia claro.
Terá, que era seu costume, ronronado e virado de lado.
Poderá ter-se apercebido de uma luz diversa naquele iniciar de dia.
E nem terá sabido que era a cor da lama: um mar entrando pela renda e ela nuazinha a gritar um socorro que nem sabia ao que chamava e nem se era verdade ou sonho toda aquela água.
Nos jornais não sobraria lugar para dizerem o seu nome.
Maria do Rosário, solteira, vinte anos.
(Amante do coronel, diriam muitos se lhes fosse dado lerem a página de necrologia por baixo de uma foto tirada no dia em que fizera exame)

***

- Dia 24 de Dezembro.
Foi o que respondeu.
E acrescentou, em tom mais baixo:
- Véspera de Natal.
A senhora muito jovem cheirava a perfume e sorriu-lhe.
- Boas festas, Coronel! – e foi andando em cima de uns sapatinhos de salto fino, encarnados, brilhantes de verniz a contrastar com o chão molhado e a lama que também entrara pelas casas cá em baixo.
A contrastar com a manta e o mastigar do pão que ia molhando em leite morno: uma caneca que lhe deram numa bondade a dizer com a circunstância.
Ele respondendo à pergunta que ela fizera:
- Sabe que dia é hoje?
E ele a aconchegar-se na manta, a sorver o reconforto do leite morno, sem perceber o desaguisado da pergunta.
No bigode ficavam-lhe, escorrendo, duas pingas brancas. O leite sujando o cinzento da
manta com duas riscas vermelhas que faziam ângulos sobre as costas ainda mal enxutas. Nuas, que ele sempre se deitava despido sobre os lençóis brancos: a ventoinha zanzando lá no alto e ele babujando os lençóis com um suor que lhe pingava em todo o corpo. Bagos grados deslizando-lhe das dobras. Como lama.
Hismaíl Domingues Conceição. O Coronel Domingues, como era conhecido.
Oitenta e quatro anos arrastados para cima do telhado.
Dirá que a morte o empurrara segredando: “ainda não és tu”
E ele subindo que a chuva desmedida inundava a casa, subia o nível da ribeira, lavava-lhe os suores e ele que tremia, nu, a olhar a morte andando em volta.
A água descolava as terras e mais as casas e despenha-as pela ribanceira.
Disseram. Viram.
***

Uns metros mais abaixo, Maria do Rosário acordava numa alva estranha.
Decididamente, ela nunca iria responder:
- Hoje é dia 24 de Dezembro.
E acrescentar em tom mais baixo:
- Véspera de Natal.
***

O sol brilhou.
Uma rodela amarela emoldurada num céu sem nuvens, apenas esbatido o azul numa neblina muito ténue.
Nem pinga de chuva.
Nada que explicasse as casas e os telhados e os haveres, como cartas desarrumadas sobre a mesa depois de um jogo.
Um sol muito amarelo a apressar o apodrecer dos corpos.
Aquele moleque abraçado ao gato.
Aquela mulher que teria ficado nos preliminares do que seria uma longa noite.
Mortos embolados em lama, de olhos muito abertos.
Tão nus quantos Hismaíl Domingues Conceição. O Coronel Domingues, a beber leite morno enrolado numa manta com riscas encarnadas a fazerem ângulos nos dobrados do corpo.
Os vivos que ficaram, a poderem pensar apenas por sofismas.
Nem a igreja, já quase só oráculo de domingos e dias consagrados, fora deixada ilesa: o santo seu patrono, boiava, desprendido do altar, numa correnteza amarela, entre dois carneiros e uma bicicleta sem selim nem roda da frente.
E morrera o padre.
Quem o disse, alto, falando com uma mulher de vestido com florinhas amarelas, foi a senhora dos sapatos encarnados. Disse assim:
- Morreu muita gente. Morreu o senhor padre Armando.
E a outra, olhando de soslaio o Coronel quase nu na manta de riscas:
- E a Maria do Rosário?
Disse assim a menina dos sapatos vermelhos:
- Essa, morreu na cama.
E olharam ambas o velho Coronel a limpar o bigode numa risca da manta.
E riram-se ambas, embora cada uma o tivesse feito de modo muito discreto, com uma pontinha de vergonha.
***

Foi quando soou o grande grito.
Desenrolado da manta, vagando nu, o sol enxugando-lhe suores e restos de chuva, a boca aberta num grito salpicado de pão embebido em leite. O Coronel Domingues a perceber a mudança.
(Maria do Rosário, vinte anos, sua amante.)
O Coronel a perceber a questão colocada pela senhora muito jovem que cheirava a perfume.
A véspera de Natal não acontecera: morrera embolada na lama.
Mcorreia

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a mudança
o acesso mal iluminado criava uma aura de mistério alimentando-o nos espíritos já predispostos à crença nas coisas do além que ali se dirigiam. racionalmente sabia que tanto podia ser um sofisma como um simples paralogismo tudo o que meus olhos vissem ou o que me fosse dito. seguindo as indicações do meu patrono estava disposto a arriscar. decididamente a mudança impunha-se e necessitava uma orientação. havia uma área de penumbra que meu espírito não lograva desvendar. na porta antiga, de bom carvalho envelhecido uma placa informava: Alva dos Anjos. vidente, cartomante….
o resto não estava legível dada a penumbra da entrada. toquei a campainha e aguardei, seguro da bondade cósmica que guiaria meus passos e me orientaria na necessária descodificação.
a porta abriu-se devagar, sem um som. ante mim uma salão amplo com um enorme vitral por onde a luz do dia era filtrada de forma ricamente cromática iluminando-o q.b. sendo a restante luz proveniente de velas sabiamente distribuídas. uma figura longilínea, sem uma palavra, fez-me sinal para que me sentasse numa poltrona e aguardasse. assim fiz enquanto escutava a música que parecia irradiar das paredes enchendo suavemente o salão. deixei que a música me preenchesse e entrei no modo de meditação. inesperadamente uma voz com um timbre inexplicavelmente musical, disse: boa-tarde. abri os olhos e diante de mim estava Alva.
Alva Maria dos Anjos Rodrigues (AMAR). o primeiro amor de minha vida. luminosa figura quase translúcida, tal a luz que emanava.
este reencontro acordou memórias e sentimentos há muito arrumados num canto de meu ser. olhámo-nos longamente me silêncio. cada um entregue às recordações que o assaltava. ao fim de um tempo a voz de Alva, profissionalmente, fez-se ouvir: por favor siga-me. conduziu-me a uma mesa colocada num ângulo do salão onde os raios solares filtrados pelo vitral incidiam recriando as imagens que o cobriam. sentámo-nos e, sem nada perguntar, Alva dos Anjos pegou num baralho de tarot. passou-mo para as mãos, aguardando que o baralhasse e cortasse. estendeu-o sobre a mesa, voltou a juntar as cartas na sua mão esquerda e começou a retirar carta por carta. a primeira que foi virada foi a do oráculo
Sereia
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demandas

o iluminado, questionou o que a turba contra mim clamava.
ergueu os braços. as palmas bem abertas viradas para a fúria da multidão e clamou: vou purificar-me, vestir a alva e consultar o oráculo.

a mulher não pode ser condenada na base de qualquer sofisma. é necessário desvendar a verdade. a BONDADE da nossa sociedade assim o exige.
enquanto me preparo e purifico é necessário que, de entre vós, um de vós que a conheça e acredite na verdade da sua mudança avance e se prontifique a ser seu patrono e, juntamente com uma vidente trace a carta de vida desta mulher sem margem a qualquer paralogismo ou erro para que, se for essa a determinação do deus, possamos avançar decididamente e libertá-la da falsa realidade em que se enredou permitindo-lhe o reencontro com a única verdade do universo, lei que nos rege e pela qual vivemos.
ide em paz. cumpri a vossa parte que cuidarei da minha e far-se-á segundo a palavra do orago.
TMara
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Bem sei que vos é difícil aceitar uma verdade que não existe. Mas a realidade é que ela já faz parte da vossa vida.
Será paralogismo olhar o vosso oráculo?
Será um sofisma para o qual ainda não estão preparados?
Organizai-vos para a mudança. Estais perante um ser iluminado.
Só os raios de luz imanados pela alva me tornam visível.
Chamai-me pois patrono, pois, decididamente, só eu poderei fazer a diferença.
Desvendar o teor da carta será um reencontro com a luz.
E luz sou eu, sou a bondade que vos guia.
Sou terra, água e ar.
Sou a verdade que procuram…
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Carta ao lado sombrio das luzes

Sempre achei que o Natal nascia na data errada… A pressa das pessoas, a angústia porque falta mais uma prenda. A mudança do ano que se avizinha...
Decididamente o Natal deveria ser “quando um homem quisesse” e não transformado num sofisma, embrulhado num papel de cores garridas e com um laço a coroar o paralogismo.
Talvez nunca tenha sido criança. Talvez tenha sido sempre demasiado adulta e tenha conseguido desvendar - não, desnudar… - o olhar mal iluminado do ser que caminha na minha sombra, e que há muito percebeu que a bondade não é algo intrínseco dos seres humanos.
Um argumento cínico a juntar a todos os outros argumentos falhados ou concebidos para falhar? Talvez. Sempre o velho e estafado “talvez”, tenho que admitir…
Olhamos para o cartão de crédito como se ele fosse o oráculo que nos vai salvar. Perscrutamos saldos de conta que se mantêm em constante movimento, na ânsia de transformá-los em elásticos de criança. O ATM devolve-nos, com pequenos ruídos irritantes e sempre iguais, a medida da nossa incapacidade. Queixamo-nos da crise. E, amaldiçoamos - à sombra do egoísmo oculto que não se furta a colar-se-nos - que são demasiadas prendas para tão parco saldo... Esquecidos que a humanidade não nasce de um embrulho.
Mas depois prometemos que esta data fará sentido. Sim, porque é Natal e tem que fazer sentido… Até ao momento seguinte em que damos uma bofetada na vida, e em nós e nos outros, pois rapidamente viramos a face, apáticos, às lágrimas dos que, a cada hora que passa, morrem sós... Criaturas sujas pela dureza da vida que foi e já não é, e que deixaram há muito de vislumbrar a maior árvore de Natal da Europa.
Os homens morrem de pé, como as árvores... porque o chão é frio, as gotas frígidas da chuva destruíram o tapete quente dos tempos de Verão.
É assim o Natal, os olhos alvos – cegos. Deixamos a vida dos outros interrompida, à espera que a “época da esperança” passe e possamos finalmente recomeçar a drenar os esgotos infectos do universo que nos rodeia. Mas sempre com “paninhos quentes” que a verdade pura e dura seria forte demais.
O Natal passa e sucede-se o reencontro com aquele sossego que “não é carne nem peixe” dos meses que se seguem. Porque este ano escapámos às estatísticas do desemprego. A casa ainda é nossa. Os filhos ainda vão ser doutores e na televisão ainda dá a mesma novela. Não perdemos nenhum capítulo. Nenhum golo do Benfica, do Porto, de outro clube qualquer...
patronos de nós mesmos, suspiramos baixinho... Que para o ano que vem vamos fazer tudo diferente.
Raquel Vasconcelos
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DA MINHA MENINICE
Era eu ainda criança, mas passados tantos anos, Num momento iluminado, sem paralogismo recorro ao meu oráculo, e falo-vos! Não como S.Francisco fez aos peixes, a tanto não me atreveria, Mas falo-vos com o coração e para que decidadamente fiquem a conhecer alguns episódios reais da minha meninice e em que o pai, patrono, homem de bondade, apesar das suas dificuldades económicas , tinha sempre na sua (nossa) mesa, lugar para quem se aproximasse seria bem recebido...
Este pai de que vos falo era o meu, já não está entre nós e neste momento sinto-me a escrever-lhe uma carta na certeza de que o nosso inevitável reencontro será um momento de paz e amor !
Na sua (nossa )mesa sentaram-se presidentes, ministros democratas,gente ligada a todas as áreas da saúde, advogados,escritores , ciganos e pasme-se: malteses.
Certo dia de alva manhã, na estrada frente á casa de meus pais, em cujo largo existe um chafariz de água não potável, ao lado repousava um ancião de trajos andrajosos, barba e cabelo sujos e em desalinho,sapatos que há muito haviam deixado de o ser.
Por sofisma ou outra razão qualquer por desvendar , o pai dirigiu-se-lhe, convidou-o a ir até nossa casa, aqueceu água na lareira e disponibilizou um espaço onde pudesse tomar banho.
Queimou as roupas andrajosas que lhe ocultavam algumas partes do corpo..
Deu-lhe roupas limpas e confortáveis, fez-lhe a barba, deu o jeito possível no cabelo, e convidou-o a sentar-se á nossa mesa onde , numa tigela, já fumegava uma açorda de coentros, ovos e bacalhau que a mãe acabara de preparar.
Comeu como se fosse da casa e nos conhecesse desde sempre, nos seus olhos um brilho de felicidade, de agradecimento , quiçá de admiração.
Terminada a refeição e antes de seguir viagem o pai entregou-lhe um saco de pano com pão, chouriço e algumas uvas, deu-lhe ainda 20 escudos
uma fortuna naquela época , acreditem.
Agradecido despediu-se e fez-se á estrada.
Como vos disse, eu era criança, assisti entusiasmada a toda aquela mudança , e jamais esquecerei o brilho daquele olhar.
Naquele dia , eu criança, pensei entre tantas outras hipóteses, que aquele ser seria Jesus feito homem..
Hoje, passados tantos anos não sei quem era, mas sei que o pai acabara de praticar mais uma das suas boas acções, e isso alegra até hoje o meu coração...Obrigada pai por tudo o que me deste, me ensinaste e me serve de lição até hoje..
Onde quer que estejas, um abraço pai....

6 comentários:

Fá menor disse...

Ora cá está mais um Jogo...
uma prendinha de Natal para todos!

Boas Festas para todos os participantes.

Abraços

Fa

Anónimo disse...

Não há dúvida que o jogo cresce, em participações e qualidade.

Boas Festas para todos!

claras manhãs disse...

Que textos!!!
Comoventes. Qualdeles uma boa história de Natal

Boas Festas para todos!

beijinho

Eli disse...

Cheira a Natal e a diveridade.

:)

Parabéns a todas as participações!

:)

Mateso disse...

Mais um feliz Jogo.A todos vós desejo

Um Bom Natal e um Melhor Ano

vida de vidro disse...

Em cada jogo se revela mais a criatividade de quem participa. Esta é uma boa prenda de Natal.

Feliz Natal a todos os que aqui comungam do amor às palavras!