sábado, novembro 22, 2008

8º Jogo das 12 Palavras - 3ª parte

E, para terminamos em beleza, com os textos e o livro dos 22 OLHARES SOBRE 12 PALAVRAS, aqui fica o convite para a apresentação do mesmo, em Lisboa, 5 de Dezembro, 19H30, Livraria Barata, (Av Roma).


O sincelo

Marília olha. Um olhar de comiseração é o olhar dela. A fronte descaída sobre o peito, ela chora o amigo morto.
É já a madrugada entrando.

Pureza e graça, se diria deste amanhecer.
Não o dirá assim Marília, que uma névoa cerrada matou na serra o seu amigo.
Ela chorando, e a aldeia a recobrir-se de rendilhados, a fazer-se donzela decorada com preciosidade.
A brisa húmida a urdir-se em rendas numa infinitude.

-Uma aleivosia – pensará Marília, exorcizando.

Marília muito triste apesar da urdidura bela, apesar do fino cortinado alvo que se vai tecendo.
E o céu a alvorecer. Um céu que nem se deu em nuvens. Um céu cerrado em névoa a empardecer a alva.
E arrefecera. Esfriara muito.
Dir-se-ia que nevava e, no entanto, Marília sabe que é tão só o mistério do sincelo.

- Oferta dos deuses! - dizia a mãe quando ele se dava; e colocava as mãos em jeito de oração num misticismo e num receio.

O mistério das coisas de Deus, pela madrugada

E o silêncio recobrindo tudo como se fora unguento.
m silêncio de eremitério. Um silêncio de pão levedando.

O silêncio triste que é Marília a chorar o seu amigo.
Mcorreia


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No silêncio do meu eremitério...


No silêncio de mim
vagueando no meu eremitério
em passos lentos e silenciados
sinto a infinitude do tempo
feita pedaços de quietude
de misticismo,
meus...apenas meus...

E pela janela
olho o sincelo
que vai caindo
na noite gélida...

Mas...
estremeço... no meu silêncio...
e sinto a comiseração
nas mãos de uma criança
que pede pão
de olhar triste
fitando a solidão...
semblante carregado
a quem roubaram
a alegria de ser criança,
+reciosidade singular
que a aleivosia dos homens
insiste em apagar...

Abro as portas do meu eremitério
vou urdir um plano
e dar o pão
saciar a fome
daquela criança
serei o bálsamo, o unguento
que aliviará a sua dor,
e num novo amanhacer
olharei o sorriso
e sorrirei com ela
no silêncio do meu eremitério...
Elsa Sequeira


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Quatro Patas

(Reflexões)

A Gatinha não queria mostrar comiseração mas percebia que o silêncio dele não era um bom sinal. Não era a falta de pão, no sentido mais simples da palavra, o que mais o apoquentava. Era algo mais. Ele não vivia num eremitério e as muitas pessoas que o rodeavam causavam-lhe algum desconforto. Nenhuma aleivosia o tinha atingido mas uma infinitude de questões andava no ar. Seria o misticismo o seu ideal de vida ? Que preciosidade queria ele atingir ?

As mãos dele, velhas e enrugadas, faziam-lhe festas. A Gatinha sentia esse carinho do dono (que cuidadoso ele fora na altura da doença. O unguento que ele lhe colocara nas feridas era mais do que um simples remédio.) Agora, deitada ao seu colo, a urdir os pensamentos e a forma de o ajudar, sentia-se calma. Ao olhar pela janela, depois de uma noite muito fria e algo chuvosa, ficou encantada com o sincelo que se tinha formado no plátano grande, defronte de sua casa.

Havia de voltar ao assunto mas agora preferiu entregar-se a um sono profundo e
reparador.
Zé-viajante



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despojamento


no silêncio do eremitério, tendo o misticismo como mágico unguento protector contra qualquer aleivosia, com minhas mãos amassei o pão que me alimentou durante uma infinitude de anos.
o cérebro e as mãos a maior preciosidade que possuía. com elas colhi os secos arbustos e as fibrosas ervas que resistiam ao frio e com elas urdi tramas protectoras para forrar o chão da caverna e me manter quente e vivo.

sem auto-comiseração entreguei-me ao despojamento dos bens que até aí tinham constituído um dos objectivos de vida e a própria vida entreguei ao ser supremo. em confiança. em suas mãos me depositando.

alimentei-me de meditação. de despojamento. ao corpo que me alberga alimentei-o com raízes e matei-lhe a sede sorvendo os belos pináculos do sincelo que, como renda, bordejava a entrada do meu pequeno habitáculo.
TMara

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Bemvinda

Olhos remelosos, boca desdentada de gengivas mirradas, corpo esquálido semi-coberto por um farrapo descaído, unhas cor de viuvez, cabelos hirsutos e pardos. Pele cor de cera. Rosto sulcado de ódio e desprezo. Mãos ávidas de tudo e vazias de nada. Na infinitude de um instante brilha o desprezo da vida, no crispar das mãos o esvair da raiva alojada no côncavo do destino. É velha. Velha de anos, mas, mais ainda, velha de vida. Chamam-lhe Bemvinda. Como se o nome fosse maldição de uma vida. Bemvinda em quê e onde? Bemvinda das Dores. Ei-lo todo, todinho como se o epitáfio tivesse sido feito aos dias de nascer. Bemvinda mendiga o pão de cada dia, de mão estendida, e lábios retesados. Há raiva no seu pedir, há desleixo no seu sorriso. Desleixo não, antes simples esgar de impotência, de descrédito. Bemvinda figura das nossas ruas e vielas, escondidas à luz do dia em subterrâneos de desdém. No vai e vem dos transeuntes, a figura esbate-se por entre o colorido da multidão, ou simplesmente na chuva de cada dia. Um olhar, um pestanejar e logo o esquecimento. Nem sequer uma dor na alma, qual unguento da razão. E o mundo salta por entre as bermas da pobreza. Bemvinda senta-se no degrau da escada, aquele que lhe serve de majestoso sofá já vai para quinze anos. Espraia a saía desbotada de cores mas viva de roda. Pousa as mãos vestidas de luvas rotas no regaço descarnado. Estende o rosto pálido ao sol da tarde e respira. De olhos fechados e ouvido alerta, bebe o som da tarde de domingo, que se entorna por entre passos das gentes. Vozes, conversas aqui e ali. A orquestra da vida. Respira Bemvinda. Não estende a mão ao esmolar. Hoje não. Hoje é domingo. Hoje precisa do SILÊNCIO da sua voz. No mutismo reside a preciosidade do seu sentir. Enrola-se em golfadas de água salgada e terra negra calcada. É como o areal de onde partiu. Vazio, seco e inóspito. Um eremitério de tristeza. Um soprar de almas perdidas uivando as sílabas da pobreza. Fugiu. Fugiu. Chegou à grande cidade. Pediu, suplicou por trabalho. Não achou. Então rolou o corpo, abriu o mundo da carne, e, ei-la de rua em rua. Esquina fétida de desejo, quarto esconso de prazer, bolso minguado de algumas notas. A aleivosia do seu ser. O urdir sem teias do seu destino. E foi assim que de quarto em quarto, de cama em cama, sexo e sangue, chegou às escadas que lhe servem de sofá. A doença apanhou-a. Não tem cura. Está tomada. Mirra no dia-a-dia. As manchas malditas envolvem-na. A comiseração visita-a nos olhares de rostos efémeros. Não sente piedade, não. Isso é poesia. Sente asco, apenas, não de si, mas do mundo. Bemvinda das Dores olha para o azul em cima tão maculado de branco. Semi-cerra os olhos. E sente-se ir. Deixa que o fluir a arrecade. Partiu. Do outro lado, por entre as brumas o vale vestiu-se de sincelo em fantasmagóricas figuras de gelo, miríades flores vítreas. O irreal povoa o lugar. O frio corta a pele. O vento assobia a canção de embalar. Deixa-se envolver na melodia, no misticismo que o vale emana. Há paz no murmúrio do mundo. Chegou finalmente ao seu destino.


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INVERNO

Saio do trabalho, está inverno lá fora. Enfio o gorro na cabeça e as luvas nas mãos, pronta para enfrentar o frio cortante que se faz sentir. Percorro a infinitude das ruas, desertas e mergulhadas no silêncio da noite. Passo ao longo das arcadas que albergam os vários ministérios, e olho com comiseração para alguns sem-abrigo que ali procuram o seu refúgio...Tão perto do poder, e eles ali, tão pobres, tão despidos, sugados pela aleivosia do mundo...
Continuo o meu caminho, abanando a cabeça, procurando esquecer aquela visão de despojamento. Desvio o olhar para os beirais dos telhados e observo os sincelos...Tão belos...Parecem lágrimas deixadas pelos anjos...Sorrio...O misticismo associado a esta época dá-me para estas coisas...Só é pena o Pai Natal, ou o Menino Jesus, não se lembrar dos sem abrigo que ficaram lá atrás...Enfim...
.
Estugo o passo, mal posso esperar para chegar a casa, o meu refúgio, o meu eremitéio...Só penso no meu serão: leitinho quentinho, uma torrada feita em pão caseiro, e depois enrolar-me naquela manta quentinha urdida pela minha mãe...Ah! É mesmo um unguento para a alma...É uma preciosidade nos dias de hoje: o tempo, estes mimos para a alma, ou mesmo uma casa ou até uma mantinha...
M.M


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Eremitério


O misticismo das tuas mãos
Unguento de infinitude
poder de comiseração
E a preciosidade de urdir
silêncio e pão
Deixam a aleivosia
Ao cobrir-se de sincelo
O eremitério
Paula Raposo


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perfídia



vivera tanto tempo com aquela família que ainda lhe custava acreditar em toda a perfídia e aleivosia que acabara por revelar.
sem qualquer réstia de amor, ou até comiseração, no silêncio de afecto não correspondido, para a prejudicar, urdiram uma infinitude de mentiras traições e perfídias roubando-lhe, mais do que os bens que a família lhe deixara, o seu bem mais importante. a preciosidade interior de cada ser. a auto-confiança e a confiança nos outros. armadura, unguento das dores que a vida sempre arrasta. manancial do misticismo do ser. pão do espírito que invisíveis e benéficas mãos sobre nós espalham criando um espaço de equilíbrio e serenidade, eremitério interior que cada um traz consigo e onde vai beber a água da serenidade que, gota a gota se derrama do suave sincelo que em nós transportamos desde o começo dos tempos constituído pela mais pura água da vida.
Amla/TMara



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Uma rocha; num prado a Aurora,
verdejante planura em cristal.
Leves, tilintam cincelos
doces cânticos de Natal

Contemplo o misticismo das mãos
que pelo rosto de tantos espalham
a preciosidade da via do pão,
sem urdir aleivosia
nem falsa comiseração

Nesta rocha onde me sento –
eremitério de silêncio – secos,
meus olhos jorram unguento
para que a alegria alcance
a face de cada criança
que pelo mundo se estende
e que o fluxo do cristal brilhe,
em infinitude, nas mentes,
para que cada dia seja Natal.
Amita

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Crença


No eremitério dos cirros flamejantes,
onde somos levados à infinitude do tempo,
sente-se o silêncio em esplendor.

apenas nesse encanto
se vislumbra o misticismo
das chamas azuis do fogo intemporal.
mas há esquinas de aleivosia.
sem comiseração visível
ou qualquer unguento desimpedido.

e sentimos, nos braços da vida, o romper de sincelo.

no entanto, continua-se a urdir pão!
quanta preciosidade há nas mãos que o fazem?
VFS

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Papel químico

Era um dia gélido ainda que não se formasse sincelo em parte alguma da cidade, como sucedia noutras, mais afeitas a que o orvalho coalhasse nos beirais.
Mas quase não sentia as mãos.
O que foi que te escrevi nesse dia?
Não me recordo…
Todas as minhas cartas deviam ser escritas com papel químico, para que quando recebesse as tuas, soubesse porque me escreves a falar de gatos e flores, de regatos, de salpicos de água, de mim e de ti.

Sem papel químico… A única certeza que tenho, é sobre o livro que me dizias que um dia escreverias. Os sonhos dos outros acompanham-nos a vida inteira, não é? De tal forma que sem nos apercebermos os vamos tornando nossos.

Quando começaram as nossas trocas de cartas sem papel químico?
Acho que foi quando te refugiaste no silêncio que chamas de “teu” eremitério. Começaste por me escrever a contar que finalmente encontraras uma serenidade, um misticismo, que nunca sentirias na “nossa” cidade.
Era a “tua” cidade, até um dia nos conhecermos e ser a “nossa” cidade. Recordas-te? Conhecemo-nos quando ainda não abdicavas da “tua” cidade. O brilho nos teus olhos surgia assim que se incendiavam os candeeiros da “nossa” cidade.
Quando começaste a mudar? A mudar de cidade, de sonhos, de nasceres do sol?
Talvez quando a tua família se dispersou. Se transformou em migalhas de pão varridas pelo vento do destino…
A minha família foi sempre tão pequena, tão pequena… Pequena demais para se dispersar. E fiquei aqui, naquela que fora um dia a “nossa” cidade.
O pensamento consegue urdir uma infinitude de conjecturas. Quais as reais? Nunca saberei.

Quando decidiste ir para o “teu” eremitério concluí que tiveras a aleivosia de me abandonar. Soçobrei num oceano de comiseração e unguento algum acalmava a mágoa que abraçava a minha alma até a esmagar.

Um dia, um dia perdido no dicionário dos dias, fui até à outra margem do Tejo em busca de algo – sim, algo que se encontra numa dessas cartas sem papel químico – e a noite caiu e fiquei a olhar para esta margem do Tejo. Lisboa cintilava como se a tivessem enfeitado, como se fosse uma preciosidade colocada delicadamente num colar e ostentada numa montra para nos enfeitiçar.
Lembro-me de pensar se seria a distância que nos amolecia, nos emocionava. E fiquei ali, a olhar para Lisboa e a escrever-te uma carta sem papel químico.
Respondeste que sim – disso lembro-me, pois tenho todas as tuas cartas – que as distâncias enfeitam os lugares, o palco da nossa vida. E foi na tua resposta que encontrei a minha paz. E compreendi que nunca deixaria de ter saudades tuas mas que passaria a aceitar o “teu” eremitério… o lugar onde escreverias o “nosso” livro.
Raquel Vasconcelos

4 comentários:

Elsa Sequeira disse...

Desejo-vos os maiores sucessos neste dia!!!
Estarei aqui a torcer por vós!!!
Depois quero saber tudo!!!

Muita força!!
Bjtsssssssss

M. disse...

A singularidade bem à vista.

Amita disse...

É bem notória a inspiração de cada autor quando se debruça sobre 12 palavras. Todas diferentes e todas tão belas. Parabéns aos participantes.
Por falar em parabéns, quero felicitá-lo pelo lançamento do livro onde se respirava companheirismo e alegria.
Sentimos a falta da sua presença, e digo sentimos porque muitos foram os que perguntaram por si, pelo mentor deste evento.
Com carinho, um abraço amigo daqui da Invicta

Anónimo disse...

realmente, as participações no jogo são fantásticas.

todo o passo é um salto no desconhecido e no imenso das possibilidades.

este jogo está cada vez melhor.
Obrigado
Vicente