Parte I
As suas raízes remontavam a tempos imemoriais e ela perdera-lhes o rasto há muito. Sabia apenas que a demência aparentava emergir do lado feminino como se as mulheres fossem marcadas com um ferro em brasa à nascença.
Não se ouvia vento e nada de concreto que explicasse aquela dança macabra de sombras que a aterrava deixando-a em sobressalto e forçando-lhe o corpo a tremer convulsivamente.
Acordou subitamente. Escorria-lhe um suor gélido que quase a paralisou pois reconhecia-o como inimigo de outras batalhas perdidas. Levantou-se e vestiu-se à pressa. Depois de vasculhar num baú antigo em busca de um mapa amarelado e envelhecido. Observou-o e voltou a guardá-lo.
Tinha olhos grandes, azul pálido, assustados, numa face arredondada que se encontrava branca como a cal. Costumava emanar uma luminosidade que nessa noite parecia estagnada como se o terror lhe roubasse a vida.
Seguiu por um atalho usado há mais de meio século pelos detentores de mapas iguais ao seu. A água da chuva permitira que a poeira invisível de que se alimentava a terra, se houvesse transformado em lodo, e este agarrava-se-lhe às saias compridas como se fosse uma mão, cravando-se nelas, tentando atrasá-la, esperando que renunciasse. Mas caminhava como que sonâmbula.
A chave para não se perder era uma sinuosidade no atalho, em forma de cotovelo.
Era a área onde principiava a adensar-se a vegetação e onde a maioria das criaturas se perdiam, preferindo desistir. A trilha morria devagar e a floresta pantanosa formava a cortina perfeita para que a antiga capela só fosse do conhecimento dos depositários do seu segredo.
Chegou. Reconheceu a lindíssima rosácea.
O único método para entrar era fazer accionar um mecanismo dissimulado: duas pequenas reproduções da enorme rosácea, uma de cada lado da portada principal, tinham que ser empurradas até se ouvir um estalido característico.
Entrou. Reinava novamente uma poeira fina apesar do odor a cera recente. Acendeu uma das velas e viu a sua sombra invadir o interior da capela. Caminhou devagar, observando os olhos do Cristo ali preso há meio século.
Se fosse de dia, a luz filtrada pela rosácea, incidiria sobre a face do Cristo.
Modelado à imagem da sua família tinha igualmente olhos de um azul pálido, perdidos numa dor para a qual apenas outros que não ele, tinham resposta.
Estava esgotada. O receio e os suores frios retornaram e ela deixou-se cair junto ao altar.
Raquel Vasconcelos
Não tenho método para te chorar. Trago lodo no olhar todo. O silêncio escorregou para dentro da minha boca depois de dar por ti a vasculhar as veias do meu coração. Em sobressalto assalto os teus lábios com um beijo de água e sal. Peço-te calma minha loucura de ser coerente. Cal-ma meu lapso de ser feliz e empresta-me o teu corpo por um minuto. Emprestas-me as raízes da flor que és plantada nos meus pensamentos. Não te esqueças do cotovelo. Quero vê-lo em cima de mim com o aroma e a densidade rosácea emergir do teu hálito!
Paradoxos
Insanidade
(dessa água não bebo. )
Escorre cal pela parede caiada
tal qual um corpo muito branco
erguendo seu cotovelo
que vem emergir devagar do fundo do lodo
da loucura.
Tal visão, cria um método,
forma
que se enrosca nas raízes da memória
e eu construo uma rosácea de sonhos estranhos...
E num sobressalto acordo
a vasculhar minhas
lembranças
para não perder
a razão.
Júlio Carvalho
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Vasculhar
Cai a água do tormento
No meu corpo aliviado
Deleitando-me num momento
Arrepiantemente desejado
A minha pele sabe a sal
Provada pela loucura
O meu nome é “cal”
Dizes-me com ternura
Do lodo fazes emergir
Raízes negras entranhadas
Tuas palavras são o sorrir
De inspirações descompassadas
Recorro ao método até à exaustão
Deixando as quadras prostradas
Apoio o cotovelo no chão
E as pernas entrelaçadas
Desenharam-me uma rosácea
Naquela pedra tumular
Onde despejaste a falácia
Nos lábios, a vasculhar…
Dormindo no meu colo
Deste um sobressalto ao ler
Que tão grande desconsolo
Seria não te conhecer.
Eli Rodrigues
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início
assim passava os dias. o corpo imerso na água. em repouso ou possuído pela fome a vasculhar no lodo algo que a matasse,
muitas vezes recorria ás polpudas raízes das plantas que vingavam nas pantanosas águas.
o ser tinham um corpo, mas desconhecia-o.
era uma identidade.
não existia a palavra. o pensamento ainda só um sobressalto expresso por descontroladas vagas de emoções como se demente vontade destruidora o possuísse.
pois não seria loucura quando através das águas via, lá muito ao longe, uma luminosa rosácea colorida por tão ricos tons diversos dos da homogeneidade brumosa do pântano, da qual sabia emanar o calor que bem gostava de sentir e, ao fitá-la um louco e intenso desejo impeli-lo a abandonar o pântano?
explorar o que via e sentia para além do seu mundo?
cada vez mais forte aquela insanidade impelindo-o a emergir apesar do medo crescer proporcionalmente. sentia que seria destruído naquele espaço desconhecido e hostil.
quedava-se a digerir o alimento deitando-se no fundo, onde encontrasse águas mais límpidas, a fitar a sua tentação. a receber o calor que lhe atenuava o frio que sempre o possuía. ficava inerte. esquecido. a olhar todas aquelas coloridas vibrações e quanto mais o fazia mais o louco desejo o invadia. o impelia. apesar do medo.
e de vontade tão intensa o pensamento começou a ganhar forma, estrutura e método.
congeminou que tinha que emergir. não controlava o impulso. mas tinha que o fazer duma forma segura. uma que lhe permitisse recolher-se ao seu ambiente, ao menor sinal de perigo.
tanto pensou na questão, pesquisou os lugares onde terminava o pântano, onde as águas acabavam, até que escolheu um local. um dia, a medo, o ser emergiu das águas. rastejante. apoiando-se no cotovelo. pela primeira vez em terra firme.
sentiu e viu, em toda a sua variedade, aquele mundo desconhecido, mas que, inexorável, o atraíra. viu, com uma nitidez nunca antes possível, o esplendor da quente rosácea fonte de luz e calor brilhando lá longe, muito alto.
aos poucos, fascinado, o ser ergueu-se.
erecta figura de um branco de cal.
pele engelhada faiscando ao sol.
iniciou a caminhada.
TMara
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Falo-te de rosácea
um breve emergir
o método eficaz de raízes
no meu corpo sobressalto
e que será de loucura
este lodo
a vasculhar
ou de cal o cotovelo
da nossa água amor.
9 comentários:
Interessantes todos os vários rumos escolhidos. Muito estimulante!
Parabéns para todos os companheiros de jornada! :))
Cada vez melhores os textos
e assim se renova a semântica de cada um ao sabor de uma imagética bem pessoalizada.
Eremita. Tu (e todos) estás mesmo de PARAbÈNS!
a inciativa foi árvore que deu frutos!
beijos.
Parabéns a todos! Pela variedade, pela beleza dos textos, pelo esforço.
Os meus parabéns a todos e em especial ao Eremita.
Bjinhos
Olá Eremita
Estamos todos muito felizes por ver a evolução deste jogo que sempre intrepretei como uma brincadeira de excelentes manuseadores de palavras (bem portuguesas, claro, e sem o absurdo acordo ortográfico)
Apesar de não entrar no livro previsto para Outubro, a todos desejo o maior sucesso. E que o jogo continue...
A todos os participantes, um carinhoso abraço com muita Paz a alegria nos seus caminhos
Como participante agradeço a todos que nos dirigiram parabéns e votos de incentivo para continuarmos.
Ao mentor deste desafio endereço,mais uma vez, o meu abraço de felicitações, não só pela ideia como também por todo o trabalho inerente à apresentação dos nossos textos.
Brindemos!
Um abraço para todos.
Obrigada por ter podido participar!! Beijos a todos.
Tomando o tempo suficiente para ler e saborear as diversas abordagens, acho sinceramente que tenho que deixar os parabéns a todos. Parece-me este um dos melhores jogos, até agora. Daqui para a frente, é só melhorar... :)
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