terça-feira, setembro 23, 2008

6º Jogo das 12 Palavras - excepcionalmente com as 60 dos 5 Jogos que intregram o livro 22 Olhares - parte I

E cá estamos com 6º Jogo que, a título excepcional, contém as 60 Palavras dos cinco Jogos anteriores.
É com tristeza que vos informo faltarem muitas participações de jogadoras/es usuais e que nos habituámos a ler com prazer, mas retomarão, por certo, já no sétimo Jogo.
Por outro lado dou as boas vindas a três novas vozes: a Lis Varela; o João Rocha de Sousa, que bisa o texto logo nesta "jornada" e o Jorge Santos.


Bem-vindos ao nosso colectivo de amantes das palavras.




I
Sessenta palavras


No país de chocolate
existem
raízes e ostracismo
método exponente

estradas em
cotovelo
e o
farol do meu medo.




é o azul céu erodido
e
imenso numa ténue silhueta
que o vasculhar da caixa vertical

envolvente no luar torna o corpo
de criança em variável
sobressalto
.




A vulnerabilidade da vida
é a viagem ao mar

tempestade nefelibata
linha
de loucura
obstrução ao distanciamento

da morte e fusão
do orvalho no sol
sombra e vapor
da manhã




Afastar água lodo
e cal
comungar
e emergir do inferno

poderá ser conselheiro
movimento e casulo
rosácea de flores

que da licença é a pena.




Degrau a inundar a conversa
de uma tapeçaria.

Paula RaposoII

Com método, mãos suaves tecem a linha de seda – retirada a vapor do casulo sem obstrução – a tapeçaria que faz emergir um país muito nosso.

No alto, o mar avassalador vota ao ostracismo o farolerodido pela água em sobressalto, no distanciamento da terra coberta de lodo. Há um corpo estendido, cotovelo apoiado no degrau, qual nefelibata a vasculhar a sombra do inferno anunciado, exponente na loucura da tempestade ao longe.

Em primeiro plano, a silhueta vertical de uma criança-mulher, em tons de cal e chocolate, os braços e uma perna erguidos a sugerir movimento ténue, pena rodopiando nas raízes da vida sob a rosácea de colorido variável, a comungar o azul do céu, a fusão do sol, o luar da noite, o orvalho da manhã. E as flores. A inundar sem licença o espaço envolvente, imenso, a torná-lo amortecido à vulnerabilidade do ser.

No canto inferior, a caixa em forma de navio a seguir viagem, mergulhando lentamente no cosmos – o conselheiro maior – de suave conversa a afastar a morte da memória dos homens.

Jawaa

III

é avassalador o imenso mar de areia que a tempestade desloca.

o azul do céu amortecido. erodido pela fricção de toneladas de grãos de areia movendo-se a loucas velocidades. o homem procura em si o distanciamento interior farol de lucidez e sobrevivência que o leve a comungar com as forças que se aproximam anulando-lhe o destrutivo medo. construindo uma fusão identitária para que se torne areia e permaneça.

alguém abriu a caixa de Pandora. sem licença todo o mundo encoberto por envolvente sombra. sem cor. despido de sol flores vida…ao longe, talvez miragem, ténue linha de luz. nela se senta. mentalmente se senta como no degrau de casa a beber champanhe e morangos molhados no chocolate que a mulher lhe levara na véspera de iniciar a viagem. o homem vê a tua silhueta, criança ainda e a de teu pai - vosso sábio e exponente conselheiro - frescas gotas de orvalho da manhã formar-se no jogo dos grãos de areia da aterradora tapeçaria que evidenciava a sua vulnerabilidade e risco de morte sem que lhe pudesse opor obstrução.

o remoinho pegou em vós e com grande pena viu-vos afastar no torvelinho da tempestade. esqueceu o corpo. pensou-se raízes. enterrou-se e pôs-se a vasculhar cada vez mais fundo. água, lodo que fosse que nutrisse a cal em que sentia o corpo transformar-se. no meio da loucura uma réstia de lucidez fê-lo vislumbrar luminosa rosácea. um sobressalto descarregou-lhe adrenalina no sistema e senhor de si, com método, dobrados os braços, pelos cotovelos, feitos pás, escavou até Emergir da mortífera areia que afinal lhe fora ninho e escudo.

saído do casulo o sobrevivente sentiu o movimento inundar-lhe o ser. leve como vapor elevou-se vertical. liberto do salvador ostracismo em que mergulhara. toupeira na profundeza das areias. nefelibata oriundo de um paísde poetas saído do variável inferno da tempestade de areia sentou-se ao luar à conversa com a Lua e as estrelas que lhe sorriam enquanto a música das esferas ecoava no agora pacificado deserto.


Sereia IV

iniciei o movimento de me afastar da caixa deixada num degrau do acesso à casa. eis quando dela pareceram emergir imperceptíveis sons acompanhados por uma luz - como de um farol - a envolvê-la num imenso clarão.
a única coisa que tinha por certa era que alguém, sem
licença, invadira meu espaço privado.

olhei a manhã e, nefelibata sem obstrução, soltou-se-me o pensamento. divagante país à deriva. esquecidas as raízesd que todas as vidas contém. tão igual eu quanto a silhueta cubista que o sol bordava nos angulosos degraus. tapeçaria de luz e sombras de diferentes densidades de onde leve vapor se libertava ao toque quente do sol na humidade deixada pela noite.

vaporágua no estado gasoso… não a que iria, dentro em pouco, acrescentar à cal viva da qual criaria suficiente distanciamento para evitar o envolvente e asfixiante vapor que queimava as flores mais próximas como se vindo das profundas do inferno. acautelava-me traçando uma linha a partir da qual tudo o que fosse vivo deveria ficar. como se navegasse num mar constituído pelas mais puras e leves gotas de orvalho sobre as quais uma pena de gaivota bailasse efémero bailado.

uma rosácea multicolor projectou-se nos degraus e um sobressalto invadiu-me. intensa tempestade varreu o mundo tornando-o demasiado variável para meu gosto e equilíbrio.

amortecido o olhar e o movimento. eu, ser à força retirado de um casulo. incompleta a gestação. senti-me erodido. como se involuntária fusão houvesse derretido desconhecidas partes de mim que ameaçavam inundar meu ser de lodo sem descortinar método que permitisse voltar ao delicioso ostracismo mental a que fora arrancado.

ia alto o sol sendo ténue e variável a sombra que o corpo projectava. deitei avassalador olhar à caixa que me fizera perder o ritmo, pois no céu, exponente lua cheia marcava lugar dizendo serem chegados dia e hora da loucura que sempre me tomava e, por mais de uma vez quase à morte me levara. olhei a sombra que começara a mover-se num movimento de vasculhar os degraus e sei lá mais o quê pois não mais me obedecia.

surpreso vi os dedos da sombra varrerem o degrau junto à caixa apanhando o chocolate que se derretera e escorria em cascata. o luar dava à cena um ar fantasmagórico. vertical movimento contrastando com o azul do céu agora escuro e denso levou-me a comungar a viagem dos astros na abóbada celeste. conselheiro da noite e da Vida.

toda a conversa inútil vulnerabilidade.

ali estava eu na noite já escura num corpo de criança franzino e anguloso que, desde cedo, me valera o epíteto de “Cotovelo”.

pequeno. frágil. exposto a todos os perigos. desprotegido…

e a loucura a crescer em mim.
Dark

V

um país não é um casulo nem um inferno. nem clausura ou ostracismo. não se deixa inundar por conversa sem nexo. antes é variável movimento como o luar. vertical como o vapor. sonhador como todo o nefelibata.

comporta o sobressalto da loucura para afinar o método. vasculha para bem longe todo o lodo.

corpo sempre renovado a emergir da água apoia-se no cotovelo, se necessário, mas não cai. não são de cal suas raízes nem a rosácea onde inscreve sua história princípios e leis.

a vulnerabilidade, como uma pena, voa para longe a afastar toda a obstrução à exponente manhã e a silhueta da criança seu mais sábio conselheiro. não teme a morte porque na tapeçaria dos séculos o orvalho da vida sempre renasce.

o envolvente sol torna ténue a linha da sombra. inicia a viagem pelo degrau onde a caixa com chocolate, sombreada pelas flores, aguarda licença para adoçar a vida.

não há tempestade ou temporal por mais avassalador e imenso que o desanime. o mar que quase o circunda bate, amortecido pela ternura, no velho e erodido penhasco onde se completa a fusão de todo o azul. céu e águas. e onde, fitando o lugar da origem de todos os sonhos, no distanciamento do completo comungar, farol do devir, se ergue o Homem que “deu mais mundos ao mundo” e mais…

...daremos.

Eremita

XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX

VI

Pétalas murchas

Chama-se Rosa. No seu nome, uma ténue semelhança com a sua vida – nos espinhos que uma e outra possuem. Ela bem que se rodeia de flores que lhe ornamentam o jardim e toda a casa, e que em cada manhã, ainda mal desponta o Sol, ela cuida com carinho, colocando água nas suas raízes, e falando com elas como se fossem suas filhas. Mas toda a sua vida foi um movimento constante à procura de um método eficaz de alcançar um farol, ou mesmo um luar que lhe alumiasse a escuridão.

Bem cedo, quase criança ainda, a custo obteve licença dos pais para fazer uma viagem a outro país, à procura da felicidade que tardava em chegar. Mas regressou, passados poucos anos, com o corpo amortecido e pena no olhar. A felicidade não estava lá!

Num Verão cheio de azul experimenta um desconhecido sobressalto no peito ao conhecer um nefelibata que virá a ser o seu marido – um copinho de leite que nunca deixará as saias da mãe. Sentindo-se inundar por um sentimento avassalador, Rosa foi-se deixando levar na conversa deste menino da cidade e, passado algum tempo, uma sombra a vem trespassar ao perceber que se encontra grávida. Essa vulnerabilidade arrasta-a, a todo o vapor, para um casamento que a vai afastar da família e, lentamente, mergulhar num ostracismo do qual só com algum esforço se libertará.

Comungar difícil este, entre uma rapariga do campo e um moço da cidade. Lisboa é um degrau que a faz mergulhar de cabeça num imenso mar desconhecido.

É num apartamento, porta com porta com o dos pais dele que se sente como que encerrada dentro duma Caixa de manhã à noite, enquanto ele sai para trazer, ao fim do mês, algum dinheiro para as despesas dos dois e do bebé que vem a caminho. Mas o maldito dinheiro mais parece ter-se erodido. Acaba por descobrir, mais tarde, que afinal os ordenados que ele diz ter em atraso já foram gastos a pagar as compras da mamã. Começa aqui a tempestade que vai provocando o distanciamento rumo à morte de um amor que se foi tornando a fusão de um céu com um inferno. Luís nunca se libertará da mãe e Rosa nunca conseguirá penetrar esse casulo e, por mais que se esforce, não se consegue adaptar a essa vida. Assim, aos poucos, isso vai-se tornando numa enorme obstrução àquela vida a dois.

José nasce com estas linhas a delimitar o seu meio envolvente, e é ele o exponente que permite a Rosa emergir da loucura que já começava a apoderar-se dela. É por ele que, uns meses depois, decide regressar à terra, àquela tapeçaria de luz e cor, de cujo orvalho tanta falta sente. Luís, se os amar, acompanhá-los-á, pensa.

Com a promessa de que se mudaria definitivamente para a aldeia, Luís começa a passar com a esposa e o filho todos os fins-de-semana. Tudo parece bem encaminhado. De cada vez que estão juntos a paixão parece embriagá-los, o amor que os une parece derretê-los como se fossem chocolate

Mas chega uma altura em que o que era certo começou a ser variável, e o que parecia ser deixou de parecer. Luís alega afazeres que o retém na cidade e Rosa sabe que a silhueta da mamã nunca o largará. Mas ainda não sabe tudo. Um pressentimento avisador e conselheiro leva-a a procurar vasculhar o que porventura se passará.
E descobre. Mas descobre tarde demais. É como se um raio a fulminasse na vertical. O marido tem um amante. Um homem que vive com ele na sua casa, que partilha com ele a cama que era a sua. E sente-se conspurcada com esse lodo que lhe penetra a pele, a carne, as entranhas. E sente-se de repente atravessada por uma náusea que lhe arranca o coração, quando o marido, de rosto lívido como a cal, lhe confessa ainda mais.

E agora, é de cotovelo apoiado no parapeito da janela, e de mão sustentando a cara, que pensa no que há-de ser a sua vida a partir do momento em que se tornou numa rosácea de pétalas murchas. Aquele momento em que recebeu a confirmação do já esperado. A confirmação de que contraiu HIV.
Fa menor

VII

Tríptico de olhares

Uma porta aberta, um cortinado que esvoaça em movimento ténue, um ceu azul carregado de promessas de luz, um arabesco subtil que desenha a onda verde do arroz. Um quadro, ou antes, uma visão feliz. No interior, ainda despido de raios de sol, perpassa o som amortecido do novo dia. A vida refulge lentamente nesta manhã de luz. Um corpo, qual linha quebrada, ergue-se por entre o colorido dos lençóis. A massa de cabelos cor de chocolate encobre o rosto, que de pronto livre, aponta para o ar, cumprimentando-o. Roda o corpo apoiando as palmas das mãos. Gesto maquinal. Depois, os pés calçam o chão e levanta-se. É franzina, uma silhueta quase de criança. Sem sobressalto na lentidão própria de quem conhece as horas, Frederica dirige-se para a porta da varanda do seu quarto. Inspira o ar, aquele cheiro a água e lodo, onde as raízes do arroz se vivificam. O olhar perde-se no horizonte. Para além do verde, onde o azul é apenas uma linha, está o mar As pupilas verdes dilatam-se como se quisessem albergar nelas o outro lado do mundo, o de aguada azul-verde. Suspira e calmamente retrocede. Porém, como que uma voz a chamasse, volta-se de novo, e olha ao longe. Um som possante, estridente, um grito cavo, propalado no vento, fá-la vasculhar o tempo. A viagem da memória invade-a.Um subir e descer agoniado, ora acima, ora abaixo. Um bater constante de corpos, um escorregar, um lacerar de carnes sempre que as vagas a sujeitavam ao chão, às paredes, aos objectos. Os golpes dilatados, o sangue quente escorregando em fios vermelhos, o sal que a queimava em bofetadas de água. Um inferno líquido. Não de chamas, mas de vagas. A luta. A esperança. Na loucura da vida procurara fugir à morte da carne, quando a vaga, mais forte, ainda do que as anteriores, a cuspiu para o exterior, fazendo-a emergir da água para o monte de cordame que jazia junto à amurada. A sua carne arrancada como se fora pele. A dor lancinante, rapidamente ultrapassada por uma maior, quando a água salgada lhe banhou a ferida. Desmaiou. Mas o tempo foi curto. Logo acordou, ainda mais exausta, exangue quiçá nefelibata. Hora após hora, num imenso tropel de agonia, o barco vogou ao sabor da tempestade. Os raios coscurantes cortavam a tapeçaria nua de estrelas. Havia o ribombar do trovão furibundo, o bater possante das ondas, estalando-se contra o barco como desejassem esbofetear as vidas no seu interior. Frederica recorda, o comunungar uníssono dos elementos, a obstrução permanente do mar encolerizado ao pequeno vapor, caixa-de-noz à deriva rebolando nos alcatruzes das águas, as ondas. Fora nessa variável de semi-tempo, perdida dentro do grande tempo, que o pai fora varrido pelas águas em sibilo avassalador de fúria. Gritos, uivos dolorosos, arrancados à alma numa fusão de dor e impotência, lágrimas quentes de sal misturando-se com o outro que a abrasava, o erguer de braços, mãos em prece, exponente de fé e clemência. Porém houve surdez, houve esquecimento. Houve desdém. E o mar engoliu-o, em boca vazia de dentes, em golfada prenhe de desejo. Logo, recorda, tudo serenou. Como se as entranhas liquidas se tivessem saciado. Sózinha, sofrendo o ostracismo final dos elementos, Frederica pouco mais relembra. O medo, a dor, o cansaço venceram-na.Frederica recolhe a lembrança. Entra no quarto. A dança da cortina é compasso de sentir. Volta-se. Olha o quadro na parede em frente. Um rosto, masculino. Um olhar, uma certeza. Um passado, um degrauerodido de passos perdidos. Na tela, o pai, olha-a, sem o distanciamento da sombra que o tempo suportou. Os olhos possuem a luz envolvente do amor. Há um misto de irreverência e ternura como se pretendesse minimizar o caos que o arrebatara para sempre. É o conselheiro mudo das suas manhãs. Frederica sorri-lhe, enviando-lhe um beijo na ponta dos dedos. É assim todos os dias. Uma conversa de sorrisos. O dia recomeça no seu casulo de vivências. Num gesto simples rebola o olhar, gira a cabeça, entrelaça os dedos nos cabelos longos, castanhos e brilhantes, qual moldura vertical de um rosto vivo, onde a vulnerabilidade do passado tem sempre a cancela semi-aberta. afastar o pesadelo daquela noite sem luar, onde nem o farol da fé brilhou, é método cartesiano de vontade. Já no exterior, no jardim voltado para os arrozais, descalça, pisa a relva onde o ORVALHO amaciou a dureza da erva, e deu licença à terra húmida para beijar as flores gráceis, ainda meio estremunhadas que limpam os olhos da aurora já recolhida em vitrais de rosácea iridescentes. Inala o ar que lhe traz o odor salgado da sua vida. O verde espraia-se na sua frente. Em breve o grão germinara. Bago branco pespontando na planície viçosa. No horizonte, o limite entre o céu e a terra torna-se difuso. Há uma mistura de tons como se o pastel se tivesse alastrado de uma tela para outra, tomando-lhe a cor. O quadro do tempo azul-verde parece inundar o olhar, e beijar a alma do dia. A beleza da tela, ante os seus olhos, é de tal forma pura e serena que lhe fere os sentidos. E as lágrimas saltam. Duas. Cristais rasgados da saudade, de pena e de solidão. Frederica compara as telas da sua vida. A do passado, forte, azul, branca, vermelha, ladra avara do deu mundo de afectos. A presente, perfeita, verde, branca, azul, dourada, um retalho do seu país em tríptico de uma vida quebrada. A sua.Logo, quando o sol se puser, o arrozal enterrar-se-á nas suas raízes, tal com ela, no sono das suas memórias e a água deslizará, uma vez mais, nas margens da noite até ao acordar da vida.

Mateso

VIII
Distanciamento

Deixei-me levar pelo mistério amortecido nas palavras suaves e promissoras de uma alma prometida. A ideia de ter um homem avassalador arrebatando o meu coração, foi como um brilho de luz na água azul. Aquela fusão não te deixava dormir… Quantas vezes sonhei com os teus olhos olhando o céu… Um comungar perfeito de momentos só meus… Fugiste para um lugar erodido, onde a minha ausência é relembrada apenas pelo farol do encontro que não existiu. Foste o imenso mar em dias de tempestade. As conchas recordam que te guardei dentro de uma caixa roubada, ainda com cheiro a chocolate. Foste pedaço de barro que se partiu sem premonição de desgraça. Apenas ausentaste-te mais e mais. Ah… aquele afastar
Sento-me no degrau envolvente à procura de um choro que não vem. O passado passa à minha frente, enjoo-me com o cheiro a mentira das flores românticas. Pedes-me licença para falares comigo sem nada dizeres. Queres o meu abraço na linha do Norte ou do Sul?! O Sol nasceu mais uma vez sem o teu beijo pela manhã. Imagino a tua silhueta… Escondo-me na sombra ténue de uma viagem fantasma. O destino solta-me a vida. De que me vale o meu lado conselheiro, se me encontro sem respostas, qual criança perdida… Contorno esta teimosia exponente e admito num segundo a morte final de um ano de nadas. Considero a obstrução inigualável da minha visão optimista, deleitando-me no orvalho das tuas faces, apoiando o cotovelo, sem pena. A vulnerabilidade à qual me deixas sujeita arrasta-me o corpo pela parede. Detesto aquela rosácea desenhada nas tapeçarias onde pisas todos os dias, o cal branco que observas, o lodo verde da verdade, as raízes sólidas desta erva daninha… Odeio cada loucura que não cometeste, assim como o mesmo método que usas para me fazer emergir. Dás um sobressalto, vens vasculhar no que falece e ressuscitas-me deste casulo onde permaneço. Não sei que conversa foi aquela tão pouco variável, mas trouxe-me o Inferno da espera esquecendo até o luar onde me pudesses inundar… Com um movimento nefelibata, rejeito o ostracismo percorrendo o país na vertical – Portugal – num comboio a vapor apenas para te amar.
Eli Rodrigues

IX

Memórias


Amortecida pelo avassalador azul do céu quero comungar com o devido distanciamento e o erodido sentir de uns tempos do passado recordar memórias.


Estou sentada perto de um farol, onde a fusão entre o campo e a praia se faz ouvindo o imenso gargalhar do mar que parece anunciar uma tempestade.


Tive de afastar, para a água não molhar, a caixa que estava encostada à parede branca cujas latas de cal ainda por ali se vê e onde está agarrado um casulo da cor do chocolate.


O velho conselheiro, homem típico e conhecido pelos frequentadores daquele local, que por ali também costuma passear, quis pôr a conversa em dia, mas o seu corpo envelhecido, as dores do seu cotovelo, faziam lembrar a criança que caíra no degrau das escadas de uma casa vizinha, episódio que todos queriam esquecer. Assim preferiram, à sua conversa, gozar o emergir da envolvente e exponenete demonstração de flores dos jardins das redondezas que entonteciam de tanta cor e beleza.


Quem vive no inferno que está sempre a inundar a nossa mente, tem de pedir licença a si próprio, para não perder a linha e cair no lodo da loucura.


Mas o luar duma noite em boa companhia, o acordar numa manhã fresca, dá-nos força e ânimo.


O método que muitas pessoas têm para preparar a sua morte é um movimento estranho e nefelibata. Provoca-nos uma obstrução de vida e quereres.


O orvalho dos campos abandonados, o ostracismo das cidades fazem um país quase ter pena das suas raízes.


Da janela principal de uma casa grande e senhorial que se avista do farol, vejo uma colorida rosácea, onde aparece todos os dias a silhueta de uma mulher bela e jovem, que parece viver em sobressalto. Ela expõe-se ao sol, mas logo de seguida escolhe a sombra para continuar a pintar numa tela, a tapeçaria ténue quer guardar para recordar a sua infância passada na casa da sua avó.


O vapor variável da velha cozinha onde apetece vasculhar todos aqueles utensílios antigos, encontrou numa prateleira vertical e estranha, uns caderninhos da última viagem e um pouco a história da vida dos seus avós.


A vulnerabilidade da sua avó é, entre muitas outras razões, saudades do seu marido, a quem tinha grande amor e partira há pouco, a falta da sua presença, do seu cheiro, dos seus carinhos e até das suas rabujices . . .


É bom chegar a velhos e termos histórias, memórias, para passar aos nossos continuadores, para no futuro, alguém contar e acrescentar mais um conto. . . é sinal de que vivemos!

mj

X

Ida Sem Volta

A mão esquerda acendia o isqueiro enquanto a direita protegia, em concha, a ténue chama, de um vento ausente, apenas um gesto de mãos, um hábito consumido nos anos da vida. Com efeito o calor era muito em Fevereiro a sul do equador, e, este Carnaval, estava a ser excepcionalmente quente. Nem a aproximação da noite com seu luar envolvente apaziguava os efeitos diurnos de um sol avassalador.
Com o cigarro preso nos dentes e os olhos semi-cerrados pelo fumo que lhe queimava a retina, abriu as portadas de madeira velha e já quase sem cor naquele velho hotel já não distante do rio, de par em par. O negrume cintilante e envolvente da noite lentamente pousava sobre a cidade. Do edifício mais alto deixava-se escorregar até tocar a rua, descendo por ela, por todas elas até cobrir o cais, os barcos o rio. O Cruzeiro do Sul, lá do alto do céu imenso inaugurava assim a noite de terça-feira gorda, a ultima noite passada naquele lugar.
Estava na hora de voltar, retomar raízes que um dia fora obrigado a arrancar. Ninguém o obrigava a isso, assim como ninguém o levou a se afastar. Era uma força ou vontade que o impelia e simultaneamente amedrontava, o medo e o anseio de reabrir novamente aquela caixa de chocolates onde escondera todos os sentimentos perdidos…
De braços suspensos, cruzados sobre a cabeça, acompanhava a dança de luzes que surgiam saltitantes entre o néon da noite. Nesse momento surgem das suas costas enlaçando o seu ventre, o envolvente abraço de Alice. Olha de lado para o espelho em cima da cómoda, e, percebe na penumbra, a silhueta do corpo dela colada no seu, despertando morna e languidamente do sono bom. O sono do amor. Vem tomar banho comigo sussurrava Alice no seu ouvido enquanto rodava o corpo num movimento preciso encaixando-se no dele num desejo crescente. Assim caminharam colados enlaçados, encarnados, pelo escuro do quarto, apenas uma sombra de amor, se amando sob a água que jorrava do duche, refrescando seus corpos, e retardando a imortal fusão. Ambos se amavam com urgência, em sobressalto com medo do amanhã chegar, mas chegou, e, de manhã bem cedo, em silencio e lágrimas olhou uma ultima vez para Alice dormindo nua, bela, olhou como se fotografasse, para nunca mais esquecer… até um dia.

No momento em que o avião, sobrevoava a cidade, logo reconheceu aquela cor a inundar seu olhar, estava tudo lá, a baía, a rosácea na igreja onde fora baptizado. Sentia que seu coração nefelibata estava de novo em casa, no seu país.
Mas depois, já com os pés bem assentes no chão, olhava e via, via e olhava de novo não querendo aceitar. A tempestade humana, a loucura, o lodo, a morte, o ostracismo pairavam por todo o lado. Não eram culpadas as pessoas do povo que continuavam apesar de sofredoras, estóicas e alegres, valentes e corajosas, sempre dispostas a cada novo dia, a lutar por uma vida melhor. Era como sempre fora, a malha, a teia de usurpadores que continuavam a ocupar despoticamente as cadeiras do poder. Na realidade tudo se resumira a trocar uns por outros, aparentemente diferentes, mas de idêntico recheio. No meio daquele inferno, reencontrou nas escadas da casa que um dia fora a sua, agora gasta e sem cal, o seu velho amigo Abel. Com a ternura das palavras que sempre usara, fez-se de novo seu conselheiro como em menino fazia, e entabulou uma conversa, a derradeira entre eles.
-Menino, porque voltou? Aqui nada é o mesmo nas suas recordações, pode andar por aí a procurar traços que façam reviver as suas memórias, mas será um esforço vão. Ouça o meu conselho, faça um casulo onde possa guardar tudo o que um dia aqui viveu, e guarde-o bem junto do coração, pare de vasculhar o passado e aprenda a viver um dia de cada vez. Vá sem pena, mas cheio de esperança, não pense mais “nisto”, não pense mais no velho Abel. Quando a amizade é verdadeira não existe distanciamento possível, pois a verdade desta é o exponente máximo do relacionamento humano. Mas antes de ir faça duas coisas, jogue flores na sua praia favorita, aquela mesma onde ficava vendo-o brincar, por todos aqueles que aqui um dia amou e por aqueles que não desistem de fazer deste país um lugar melhor para viver, e, compre uma tapeçaria da savana, com um leão vigilante debaixo de um embondeiro, para nunca se esquecer quem é nem de onde veio.
Dito isto ergueu o corpo amortecido na bengala e tocando-lhe com o cotovelo disse, venha o cacimbo (orvalho) está a cair e a Susana que hoje está de bom humor, o que nela é muito variável, preparou-nos o jantar e vamos juntos comungar de um dos prazeres da criação feito por suas mãos. A maravilhosa Muamba de galinha…
Filipe obedeceu a Abel foi-se embora sem olhar para trás.
Com a alma do tamanho do mundo, olhou sempre em frente, e mais e mais, e meteu de tanto andar, de tanto ver, o mundo inteiro dentro da alma e era quase feliz.
Mas a sua felicidade deparava-se ainda com uma obstrução, a falta do amor verdadeiro, reconhecido, vivido e sentido. O amor de Alice!
E sem pedir licença, mas seguindo um método e uma linha com determinação, foi buscar para morar o que faltava no seu coração...

Tantos anos passaram na sua vida, não sabe quantos, há muito se esquecera de contar, vive o que tem a viver, por quem tem a viver, com quem tem a viver, com toda a vulnerabilidade. Não há passados, apenas, como sempre, o hoje está presente, só assim, pode recordar o que viveu com um sorriso. E é assim que quer terminar, disso não tem duvida, com um sorriso, ali mesmo onde agora está, um alpendre velho, de uma casa de madeira velha, degrau a degrau bem contados são cinco até ao areal, a 30 metros do mar azul, junto ao pontão que com o seu velho farol, mas imponente e vertical, afastam do perigo cada vapor navegando em boa viagem, ao largo daquela “sua” ilha, pequena, mas com muito Sol. Mas isso será num futuro qualquer pois nesse momento cada criança corre pelo areal, são quatro, filhos de filho, e filhos de netas, a pele queimada pelo sol gritando, avô, avô…
A voz de Alice, envolvente, aquele amor erodido que um dia ambos julgavam ter perdido, fê-lo emergir do seu mar de pensamentos, interrompendo suas cogitações.

-Filipe meu velho traz as crianças e venham jantar.

Jorge Santos

XI

60 PALAVRAS

todos os anos (é tradição) na consoada há a luz das velas nos parapeitos, com a chama vertical como um farol, a indicar um porto de abrigo conselheiro a quem, por algum sobressalto, perder o seu caminho numa tempestade. o céu parece mais imenso e estrelado ao luar e a conversa anima-se neste comungar de uma nova reunião de família. a noite envolvente é como um casulo de memórias felizes de criança num serão nefelibata. sem pedir licença, a fantasia anda de mão dada com a vida. há a expectativa de peças de teatro e pantominas a inundar o dia de alegria. por um instante avassalador somos todos duendes e fadas. num ténue e sábio movimento a magia é real. sem obstrução ou vulnerabilidade possíveis. a manhã começa a espreguiçar-se com os primeiros raios de sol (às vezes cheira a mar) e a afastar a sombra da noite que morrelinha do horizonte. o vapor do orvalho escorre como água desde as pétalas rosáceas das flores até às suas raízes. pensar em compras de última hora é uma loucura e pode ser o exponente de uma viagem ao inferno. os mais ousados entram nas áreas comerciais, de cotovelo em riste, para vasculhar prendas variáveis, manter o distanciamento entre os corpos e emergir vitoriosos por entre um lodo de multidão. num país de brandos costumes, é um método que raia uma espécie de ostracismo (tão contrário à quadra natalícia). é comum presentearmos amigos com caixas de chocolates, embrulhadas em coloridas tapeçarias de papel, cuja silhueta desvenda de imediato o conteúdo. a riqueza está na fusão de sentimentos e não na pena do consumismo erodido. todos os anos (é tradição) à luz das velas o azul das portadas realça a cal das paredes. degrau a degrau a família reúne-se à volta da lareira para celebrar um amor tecido há gerações.


ana eugénio

8 comentários:

Conceição Paulino disse...

realmente muito para ler. Voltarei a ler com tempo pois só com tempo leio.
Bjs
Luz e paz

Paula Raposo disse...

Tenho que voltar com muito mais tempo para conseguir ler todos os textos. Vejo que inauguro a listagem...e quero deixar aqui escrito publicamente que o meu poema foi revisto pelo Eremita! E...sendo assim, ficou mais bonito! Muitos beijos.

M. disse...

Realmente há muita habilidade por aqui...

Bichodeconta disse...

Sendo uma pequena gota de água neste universo de escrita e de saberes, fico feliz..No entanmto , ler-vos é deliciosos..
Parabéns aos participantes pela harmonia e graciosidade nas palavras.. Um abraço, ell

Fá menor disse...

Voltarei mais tarde para ler mais,
mas acho que superámos bem mais este desafio não muito fácil!

Acabei de colocar o meu texto em Retalhos e Rabiscos

Anónimo disse...

Muito para ler e felizmente muita qualidade também. Voltarei de novo, para ler mais e melhor!
Abraço.

Anónimo disse...

que maravilha :) tanto trabalho! e tanta criatividade :)) parabéns a todos e um grande viva ao anfitrião ;)
tenho um novo blog aqui:
http://shanti.blogs.sapo.pt/

Elsa Sequeira disse...

Muito bem...o jogo!!!
(Ai! com tantos afazeres tenho faltado...desculpem-me!)

Eremita!!

Vim agradecer a tua força nos meus MARES D'ALMA!!

bIGADOOOOOOOOO

BJTSSSSSS