terça-feira, julho 29, 2008

5º Jogo das 12 palavras (último a integrar o livro) "22 Olhares/12 Palavras")- 2ª parte


XII

Nefelibata
, voando nos sonhos que constrói por aí

no inferno das memórias, saído do casulo cerrado,

cresce vertical e puro, no ostracismo a que se sente votado.

Porque do mundo variável em que desperta,

nem sempre o vento murmura em conversa amena,

quantas vezes sopra um vapor quente que escalda

e o faz tombar ofegante.

Miruíi

XIII

surpresa na noite

Estávamos à conversa quando um imprevisto e subterrâneo movimento, mesmo por baixo de nossos pés, nos perturbou. O movimento, de intensidade variável, tornou-se inquietante. Calámo-nos. Sentíamo-lo cada vez mais intenso e um som como um rugido chegou-nos das entranhas da terra.

Algo temerosos afastámos-nos um pouco. O silêncio entre nós. Sem pestanejar fixávamos o ponto onde antes sentíramos o movimento.

A terra fendeu-se e um intenso jacto de fervente vapor, vertical coluna, queimou tudo ao redor num círculo de vários metros. Sem desviar os olhos batemos em retirada, ás arrecuas, mas não para fugir. A curiosidade, superior ao espanto e ao receio. Estávamos num estado de estupor. O luar a inundar a clareira criada pela devastação dos arbustos e árvores calcinadas dava-nos total visibilidade.
Por horas sem conta ficamos silenciosos a observar a vertical coluna a subir pelo nocturno céu
enquanto aos poucos perdia intensidade, potência…tanto no calor que irradiava, como na altura a que se projectava.

No cimo de um inesperado e intenso jacto surgiu um imenso casulo.

Casulo foi a palavra que nos surgiu.

Semelhava o casulo do bicho-da-seda.
Mesmo à distância a que nos encontrávamos constatámos que teria uns dois metros e meio de comprimento por cerca de um metro e meio, ou mais, de largura.

O jacto de vapor decresceu de intensidade e altura até o casulo pousar suavemente no solo.

A surpresa e a consternação eram gerais mas, aos poucos, face à quietude proveniente daquele imenso corpo aproximámo-nos do casulo depositado no solo calcinado, num movimento síncrono como corpo único. Não se ouvia um ruído. Nem o passar do ar. Nada se movia ou ouvia. Na terra a anterior e inesperada agitação parara. Sem olhar uns para os outros a cerca de dois metros estacámos.

Os olhos sempre focados naquele enorme e desconhecido objecto iluminado pelo luar como artista em palco iluminado pelos holofotes. A lua parecia ter parado num ponto do céu. Num recanto do meu cérebro a racionalidade abriu caminho e ecoou: foi a terra que parou de girar para que a lua continuasse a iluminar o estranho corpo ali deixado…

Eis que este começa a irradiar, de dentro, uma luz amarelo-alaranjada viva, contrastando com a branco-azulada da lua e, diante de sete perplexos pares de olhos abriu-se ao meio, como casca de noz e um enorme ser alado, de humana forma ergueu-se distendendo o alto corpo e as longas asas de uns quatro metros de envergadura. Foi então que nos viu e saudou-nos.

- “Saúdo-vos, humanos. Sou o Nefelibata Portugal e há 865 anos fui punido e enviado para as profundezas do planeta Terra. A punição foi tanto para mim como para vós, povo português, em virtude do violento acto de um filho contra sua mãe, por ambição em reinar.

Nós, os Nefelibatas somos os mensageiros dos sonhos construtivos que alimentam a roda da vida de cada povo e do planeta. Vós sois o meu povo. O inferno em que tendes vivido acaba hoje porque o ostracismo que me foi imposto para punir a minha incúria ao não ter previsto a subversão do sonho deste país terminou.
Voltareis a ser um país que sonha, age e faz acontecer. A vossa auto-estima é-vos devolvida e fareis grandes feitos, coisas que até há pouco vos foram sonegadas porque esse é o meu trabalho e estava impedido de o fazer – alimentar e reforçar o sonho construtivo e inovador…”

Dito isto o enorme ser alado abriu as asas e desapareceu nos ares. O luar, que sempre sobre ele estivera fixo, desapareceu de imediato. O tempo, que havia parado, retomou a normalidade e vimos a lua no céu. Muito à frente do local onde nos encontrávamos.
TMara

XIV

Neste casulo em que me fecho,
a conversa nefelibata
do luar
é movimento e inferno
variáveis de um país,
de vapor não erguido
na vertical
e que de ostracismo

me irá inundar.
Paula Raposo

XV

Opção

Cansado do ostracismo a que era votado o nefelibata saiu do casulo onde se recolhera do inferno em que lhe transformavam os dias por ser diferente. Por nele haver variáveis incomuns. Sempre tema-objecto de inútil conversa - porque nem sabiam de que falavam - onde o preconceito pontuava todo o movimento - da língua ao pensamento – se o tinham! pensou para si – ergueu-se em toda a sua estatura. Vertical como sempre fora e seria.

Caminhou deixando-se inundar pelo fresco ar da noite.

Aspirou o perfumado vapor que se elevava da terra húmida. Deitou-se num raio de luar e ficou. A sobrevoar um país que diziam de poetas.
Sereia

XVI

Cheira a pólvora… como de resto seria de esperar neste inferno que é a guerra neste país. Tento concentrar-me e focar o meu pensamento em dias felizes, vividos, parece-me agora há muito tempo, junto dos meus filhos e da minha mulher. Enquanto fixo o pensamento nessas imagens, o meu olhar prende-se ao pequeno pedaço de luar que posso vislumbrar através do, também, pequeno casulo em que me encontro, escondido das balas que ainda se fazem ouvir lá fora. Entre a memória do vivido e o presente, sinto os medos a inundar-me a alma, mas rapidamente me concentro na necessidade de fazer história, estar onde outros não estão, e relatar a verdade vivida por quem sofre as atrocidades de um conflito como este, de quem sofre o ostracismo de uma sociedade doente, possuída pelo ódio. A realidade aqui presente está de tal forma longe da realidade do meu país, de brandos costumes, que pela intensidade dos acontecimentos me sinto preso a uma quase loucura, a uma condição de nefelibata, que dificilmente consigo explicar.

O meu companheiro de guerra desperta-me e faz conversa numa vã tentativa de afugentar os medos que tomam conta de nós. Neste buraco apertado tento mexer-me, e num movimento doloroso, colocar o corpo na vertical, pois contam-se já muitos minutos nesta posição incómoda, quase fetal. O tempo atordoa-me o pensamento, ouço o meu companheiro falar, mas não consigo responder… sinto-me incapaz de racionalizar o momento, e, sem dar conta, dou por mim a sentir o cheiro do comboio a vapor, daquela viagem em que o meu avô me dava a mão para me sentir mais seguro, tão tenra era a minha idade. Lembro-me de dizer-lhe que tinha fome, de que a viagem parecia não ter fim… sinto fome, sinto-me agoniado, o que me traz de novo à realidade. É nesta variável entre o passado e o presente que visualizo o sorriso do Pedro e da Inês… só eles me podem restituir a sanidade necessária para vencer o cansaço desta situação.

(Texto é dedicado a Luís Castro, também ele, um herói de guerra que pelos seus olhos nos permite ver o mundo quando ali não estamos presentes. Obrigada, Luís)
Sónia Pessoa

XVII

A dúvida

Tudo começou numa conversa com o vizinho do 4º esquerdo. Quando se encontravam no café, em frente à bica a escaldar, costumavam falar sobre os problemas da actualidade, sobretudo do país. Dependendo do humor do vizinho, um bocado variável, por vezes vinha à baila o futebol. O homem era adepto de um clube em maré de azar e ele compreendia que esse assunto fosse, frequentemente, votado ao ostracismo. Era assim o nosso herói. Compreensivo e amante da concórdia, o que chegava a ser confundido com falta de “espinha vertical”. Eu, que o conheci razoavelmente, sempre achei que o casulo em que parecia encolher-se era a sua protecção contra discussões e mal-entendidos. Era uma daquelas almas que estão sempre bem colocadas num movimento pacifista, entendido como aqueles que começam por praticar a paz.

A tal conversa de que ia falar, quando comecei a divagar, deu-se numa bela noite estrelada e transformou a vida do nosso homem num inferno. Acabavam de sair do café, discutindo o estado calamitoso do país, e depararam-se com um luar imenso que conseguia inundar de luz irreal todo o bairro. Até parecia um bairro bonito, pensou o meu amigo, perdendo o olhar num leve vapor de neblina que pairava no horizonte. E, virando-se para o vizinho, num rompante de que ainda hoje se arrepende:

“Sabe, precisávamos era de uma luz assim para conseguirmos gostar desta terra.”
O vizinho, homem culto mas de pés assentes no chão e pouco dado a divagações, olhou-o estupefacto:

“Homem, você é um nefelibata!”

O nosso herói engoliu em seco. Como responder? Como se responde quando não sabemos o que nos estão a chamar e, ainda por cima, detestamos discussões?
“Talvez, talvez. Até amanhã, vizinho”

Durante dias não dormiu e quase não teve apetite. Não sabia se tinha sido insultado e estava tão convencido que a palavra nem existia que não se lembrou de consultar o dicionário. Mas, quando me contou a sua enorme dúvida, fui com ele folhear o que encontrei mais à mão. E lá estava, entre outras coisas:
nefelibata - indivíduo que, animado de um ideal, não atende aos factos da vida real, positiva”

Benditos sejam os dicionários! Este pôs um sorriso enorme no rosto torturado do meu amigo.

Vida de Vidro

XVIII

Amigos


Acto Primeiro (e único)

Sala antiga, decorada modestamente. Acolhedora também. Um sofá-cama, protegido por uma colcha.
Estante repleta de livros, na sua maioria de viagens.
E outros móveis menores. No chão, um tapete já gasto. Dois amigos conversam.

Cena I

Simão e Gatinha, deitados no tapete, televisor ligado.

SIMÃO (depois de ver atentamente um programa de TV):

-Aqui fechados neste casulo, numa conversa que nem sempre tem jeito, ignoramos o inferno que se passa lá fora. Ou pelo menos fingimos que não sabemos…

- GATINHA (lambendo as patitas, deliciada): Meu amigo, deixei-me inundar por pensamentos positivos, coisa que não tens, e apenas me interessa gozar a paz da nossa casa. Boa comidinha, cama fofa, que mais queres? Olha, vou dormir uma soneca.

Cena II

Simão levanta-se, vai até à estante, pega num livro e folheia-o devagar. O luar entra pela janela.

- SIMÃO: Imensos livros para ler (o nosso dono compra tudo…) e parece-me que não duro o tempo suficiente para os acabar. Costumas ler, minha amiga?

- GATINHA: Não gosto, Simão. Começo a ler e só o movimento do virar as páginas me dá sono. Prefiro dar um passeio pelo telhado.

- SIMÃO: Nefelibata é o que és. Passas a vida nas nuvens e não te apercebes dos problemas que afligem a humanidade. E por extensão a nossa própria existência. Fome, injustiças, calamidades… Afinal em que mundo é que vives?

- GATINHA: Neste pequeno mundo que é confortável. Que cada um cuide de si e deixe os outros em paz.

Sai, deixando Simão a pensar: com “ gente “ assim, é difícil mudar o Mundo. O ostracismo a que votam as questões importantes é preocupante.

Cena III

Gatinha volta, acompanhada de um vistoso gato, amarelo-torrado, a contrastar com o preto e branco da sua companheira.

- GATINHA: Meu caro Simão. Este é o Tareco, o meu novo namorado. Lindo, não é?

- SIMÃO: Como é que este país pode avançar com seres que apenas pensam na diversão? Por acaso, tens alguma ocupação, Tareco?

- GATINHA (antecipando a resposta do Tareco): Não tem. Mas é habilidoso e prometeu reparar-me o ferro a vapor que, como sabes, se avariou ontem.

- SIMÃO: Feitio variável o teu, Gatinha. Fútil e descuidada ainda te preocupas com o engomar da tua roupa.

- GATINHA: Vou deixar a conversa por aqui e dar um passeio com o Tareco. Sabes, Simão, quero deixar bem claro que, não podendo andar na vertical como os nossos donos, é na horizontal que me alegro com o meu gatinho. Fica bem e muda o Mundo sozinho.

Simão, entediado, volta-lhe as costas. Sabe que não vai desistir dos seus ideais mas sente-se o D. Quixote do mundo canino.

Cai o pano.

Vibrantes aplausos fazem-se ouvir.

Zé Viajante

XIX

No meu país não há verdadeiros nefelibatas. A sociedade tem efectivos e seculares paradigmas de ostracismo passivo mas violentamente sentido por quem arrisca o diferente. Poucos têm a espinha suficientemente vertical para deixar o conforto da inútil conversa nas tertúlias de amigos ou de café. A comodidade do casulo onde habitam e arriscar a instável variável feita de desconhecido movimento que os pode conduzir ao inferno do anonimato. Deixam-se inundar pelas mais libertárias ideias, que se evolam como vapor ao luar e continuam a caminhar no medo da perda de estatuto como quem pisa algodão em rama armadilhado.

Atiram frases longas com palavras que quase ninguém entende e fingem manter-se erectos quando a sua real posição é de quatro ou rastejante.

Dark

XX

Fim de tarde

A chegada do fim do dia tinha um qualquer quê de mágico...sentava-me na cadeira de baloiço, velha e rangente, e ali ficava a admirar o lago que se estendia à minha frente. Diante de mim, um bule contendo chá, cujas aromatizadas colunas de vapor eu inalava, deliciando-me com o seu cheiro...

Ali ficava eu em longa conversa com o meu amor de sempre, discutindo o que nos vinha à cabeça, quer fossem as intermináveis viagens que havíamos feito pelo país, quer fosse política, com a minha posição de nefelibata a originar acesas discussões.
Poder-se-ia dizer que estávamos votados ao ostracismo naquela casa isolada, no meio de nenhures, mas preferíamos assim. Afinal onde noutro lugar poderíamos assistir a este movimento tão suave dos dias, onde poderíamos assistir a estes pores-do-sol tão intensos e tão vermelhos a lembrar as chamas do Inferno?
Ali ficávamos a conversar, até a luz do luar inundar o lago, até os seus raios tocarem notas de tom variável na superfície calma das águas, até os pirilampos saírem do seu casulo e voarem em rota quase vertical em direcção à luz....
Era um sítio mágico, aquele...

MAC

XXI

vivo num pequeno casulo. País habitado por nefelibatas não por opção, mas pela mais pura necessidade. "o sonho comanda a vida" é para nós uma forma de vida. a vida ela mesma. toda a variável à norma torna-a instável movimento-inferno que nos destrói enquanto o luar ilumina este pequeno rincão deslizando para as atlânticas águas que um dia o inundarão sobre ele se fechando em feroz ostracismo. Talvez alguma fina linha de vapor residual fique. a indicar o lugar onde um dia existiu um país que se esvaiu em pequenas e inúteis conversas de café sem mais consequências do que uma momentânea e fugaz exaltação.

nenhuma humana forma vertical se manterá à tona.
Amla

XXII

Falamos de um terno amor,

de todo um tempo em espera,

num variável movimento

de olhos cansados

Um país imaginário nos tornamos,

na vertical postura das palavras,

convencionadas, planas,

dotadas ao ostracismo do luar

Sobre a moldura dos nefelibatas

corre lesta a noite rubra

num intocável inferno de asas

E dessa conversa muda

tanto de nós se afunda

do casulo a inundar

no gestual vapor do olhar

Amita

2 comentários:

Paula Raposo disse...

Depois de excelentes palavras que tenho lido, sinto-me uma insignificante colaboradora...muitos beijos. Bom fim de semana.

M. disse...

Parabéns também a este grupo de criadores de textos. Fantástica a diversidade.